As discursivizações do sexo travesti no acontecimento fake dói: corpos, discursos da resistência e coragem de verdade
Maxmillian Gomes Schreiner
Orientadora: Dra. Denise Gabriel Witzel
Graduação em Letras na Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro-PR)
VÍDEO DE APRESENTAÇÃO
Conhecida como terrorista de gênero, a artista brasileira Linn da
Quebrada, mulher travesti, preta, cantora de funk, atriz, irrompeu como
acontecimento trazendo à tona letras ácidas que põem em xeque as masculinidades
exercidas nos relacionamentos entre pessoas LGBTQIA+.
Partindo do entendimento de que estas formas de prazer e afetos ainda
estão calcadas em uma ordem discursiva heterossexista “compulsória” – como nos
atesta Judith Butler (1999) – Linn tem criado músicas e videoclipes onde
enfatiza a destruição de tais modos de se relacionar: “aqui o buraco não é pra
macho” (LINN DA QUEBRADA, 2020) ou “tu vem me dizer que só trepa com gay
bombabo, apenas pare querida, vem foder com os veado” (LINN DA QUEBRADA, 2017),
por exemplo.
Cantando e performando uma estética que “envaidesce a viadagem” (LINN DA
QUEBRADA, 2017), Linn inscreve-se numa série que irrompe como apocalíptica
daquilo que conhecemos como afetos “abjetos” (BUTLER, 1999).
À luz dos estudos discursivos foucaultianos, em nosso gesto analítico,
tomamos como materialidade o videoclipe fake
dói (LINN DA QUEBRADA, 2019), com o intuito de descrever e analisar os
enunciados verbais, visuais, verbo-visuais e sonoros presentes nestas
“audiovisualidades” (MILANEZ, 2019). Para isso, focalizamos a
“intericonicidade” (COURTINE, 2013), a partir de séries enunciativas da música
e das imagens (re)atualizadas no próprio corpo da artista, numa narrativa feita
em animação 3D.
Videoclipe Fake dói
À guisa de Foucault (2017a) e de sua História
da sexualidade (2018), descrevemos as séries para acionar as
discursivizações que atravessam “interseccionalmente” (AKOTIRENE, 2019) o corpo
de uma travesti prostituta e preta.
O corpo que se fabrica na trama dos saberes e dos poderes “microfisicamente”
(FOUCAULT, 2017b) alastrado na sociedade e é moldado numa ordem discursiva da
medicina, sendo incontornavelmente investido por uma “biopolítica” (FOUCAULT,
2008). Entretanto, esse mesmo corpo marcadamente abjeto, constrói a si mesmo
numa estética na pele de estereótipos: a travesti garota de programa é uma
boneca; encontra-se estática como um corpo-manequim, recebendo promessas de
amor “fakes”. “Seu amor é falso, distrai, destrói, seu amor é pau”, “fake, fake, fake, fake dói, distrai, destrói.”
Série: rosto plástico; corpo robô; unhas enormes; corpo-manequim.
Imagens da
internet.
No rosto, nas unhas, nos peitos fabricados industrialmente, nas curvas
acentuadas com tratamentos estéticos, hormonoterapia em gel e silicones, o
corpo travesti e transexual emerge como fabricação constante em busca de si
mesmo. A música nos diz “fazer algo
pós-moderno, estético e casual/ pra mudar o visual; quem sou eu?”,
questiona a enunciadora diversas vezes.
O corpo boneca é formado nesta narrativa pois se trata de um corpo que é
alugado para o prazer. A idealização de um corpo estereotipado faz com que este
corpo travesti, formatado para o prazer, seja destinatário de promessas de
amor, como nas seguintes sequências extraídas da letra de fake dói: “playboyzinho
maconheiro, tá dizendo que me ama, me comendo rapidinho, em pé, embaixo do
chuveiro, cê não me engana, mó travequeiro”. E depois, “seu amor é falso”.
Na agonia de se entender quem se é, Linn recorre às figuras de mulheres
míticas e incorpora “utopicamente” (FOUCAULT, 2013) Eva e Medusa, reativando em
seu corpo as discursivizações, mas também a quebra de uma série nos
acontecimentos que estas mulheres tiveram na história.
Série atualizações: Eva – pintura da Idade Média; Eva – Linn da Quebrada;
Medusa de Caravaggio e Medusa de Linn da Quebrada.
Imagens da
internet
“Quem sou eu?” é repetidamente a pergunta que Linn canta sobre a
personagem travesti que busca em si mesma a sua própria verdade. Rompimento com
a lei divina e patriarcal, rompimento com o celibato e entrega ao prazer.
Na cabeça, os olhos como profundos entendedores das “performances”
(LESSA; TORTOLA, 2015) que realizam os corpos, buscam estáticos, dispersos e
como que extasiados “a verdade”. “Eu não
sei o que eu faço, eu não sei o que eu sinto, fake, fake, fake, fake dói”.
Série: olhares que buscam.
Imagens da
internet.
Olhar estático do corpo transformado em boneca. Olhares que se mantêm
encarando. Buscam a si mesma e fixamente insistem em olhar. Como que extasiados
pelo que viram e já não podem abandonar, olhares sublimes que encaram o
espectador e o fazem voltar-se a si, como numa dobra (MILANEZ, 2019),
questionando sus própria ordem discursiva.
Saltam aos nossos olhos algumas possibilidades de análise: os olhos do
corpo-estátua apontam para o olhar de uma serpente; os olhos de Eva são
investidos de efeitos de algo dotado de super-poderes; os olhos de Medusa
conhecidamente, ainda que numa cabeça decapitada, é fatal, petrifica. Os olhos
de um corpo que some, como na última imagem da série – e a última cena do
videoclipe –, continuam firmes em sua visão, ainda que durante a consumação
fatal do corpo.
Quanto mais bem organizadas e estáticas num estereótipo de beleza
exótica, os corpos travestis e transexuais que se prostituem, podem adquirir
recursos para viajar e realizar mais modificações corporais, requisitando o que
a medicina têm de mais novo a oferecer. Pensadas numa geografia dos prazeres,
Linn diz: “(...) pra viajar o mundo
inteiro, pegar vários estrangeiros, com o bolso cheio de euro, pegar vários
estrangeiros, passar o inverno na Europa e o verão no Rio de Janeiro”.
Fortemente atrelado à prática da migração, como nos evidencia Vale (2002) por
exemplo, os corpos que mais se aproximam de um ideal de beleza, ganham as
melhores “praças”, principalmente na Europa. Em fake dói há também uma organização, uma linearidade, como podemos
ver na série abaixo:
Série: corpo sublime: unhas, estátua, jardim, manequim.
Imagens da
internet.
Entretanto, Linn da Quebrada, inscreve seu discurso num rompimento de uma
série, na destruição destes corpos e cenários bem organizados. Através da
repetição, a artista encontra uma falha nestes discursos de amores fakes: “Seu amor é falso, distrai, destrói”. Repetindo os enunciados de
corpos plásticos, ela instaura uma diferença na série que vê tais corpos como
objetos passíveis ao prazer heterossexual; além das imagens, como vemos na
série abaixo, há a repetição linguística, que acaba por dar cabo também a uma
diferença no jogo com a língua: “Seu amor
é cômico, cômico, cômico, comi cu, cômico, come cú.” O ritmo da batida
eletrônica da música é repetido à exaustão e então, como numa dobra, volta-se
para si mesmo:
Série destruição: unhas se
estilhaçam, estátuas caem, jardins se destroem, belezas somem.
Imagens da
internet.
Na modificação corporal fundamentada numa ordem da beleza, ofusca-se uma
verdade sobre tais corpos. Linn rompe com os automatismos que discursivizam e
veem a sexualidade de mulheres transexuais e travestis apenas enquanto
heterossexuais. Ela instaura um acontecimento numa ordem discursiva que vincula
a prostituição aos prazeres dos homens: “Eu
gosto mesmo é de mulher, de você eu só quero o dinheiro”. Nesse enunciado, para
além de uma confissão dos prazeres, é da ordem da parresia, pois a prostituta que diz não amar seus clientes, diz a
verdade sobre si (FOUCAULT, 2011, p. 8), e coloca-se em perigo ao subverter a
série heterossexista causando uma crise ética (GROS, 2004). A prostituta em fake dói têm coragem ao tratar de sua
lesbianidade confessando a quem não era esperado que fosse seu interlocutor,
aquele que diz a amar, mas que ama o que é fake.
Despojadas dos lugares de sujeitos, as travestis e mulheres transexuais- aqui
tomadas como sinônimas ainda que conservem sentidos e ordens discursivas
próprias -, mesmo após as transformações corporais mais bem fabricadas, ainda
ocupam os espaços abjetos de nossa sociedade. Não concordar com as normas
vigentes, tornar-se insubordinado, contrário e porque não, marginal, é um
pensamento que está presente em toda a obra de Linn da Quebrada.
Na busca por si mesma enquanto sujeito da arte, Linn expressa práticas de
resistência, cantando sobre os afetos e as práticas sexuais que divergem de um
padrão homem macho e mulher subordinada. Como nos explica Milanez (2019, p.
27), compor a si mesmo nos vídeos, é resultado também da negociação entre os
discursos que dizem quem somos e as espessuras históricas destes discursos. O
videoclipe enquanto “heterotopia” (GREGOLIN, 2015), é uma materialidade
discursiva que torna o discurso possível, expressando as espessuras de um
sujeito na história. “A espessura de uma história é sempre a trama do caminho
da busca de si que, em determinados momentos toma como foco um certo sujeito”
(MILANEZ, 2019, p. 25).
A organização de um cenário, bem como de um corpo fabricado, é também uma
“docilização” (FOUCAULT, 1987) de um corpo que está na ordem binária, no prazer
submisso. Como os manequins e as bonecas - que são estáticas -, os corpos travestis
ao estarem (in)vestidos pelo prazer e poder, numa ordem discursiva de ascensão
a um padrão de beleza, podem obter como resultado dessa docilização, promessas
de amores fakes.
Não desejando encerrar a discussão acerca do corpo travesti bem como dos
enunciados de fake dói em nosso gesto
analítico, questionamos este acontecimento refletindo como os poderes e saberes
sobre a sexualidade se colocam numa ordem discursiva. Para tanto utilizamos as
séries, formadas a partir das audiovisualidades que materializam o videoclipe enquanto
discurso. Consideramos crucial o fato de Linn da Quebrada - artista travesti
brasileira, preta, cantora de funk -, irromper na ordem discursiva sobre a
prostituição ao narrar uma travesti que se forma a partir de imagens e
discursos considerados fakes. Linn
rompe com os automatismos desta ordem discursiva e cria uma protagonista
travesti/mulher-transexual preta e prostituta, que atualiza imagens de nossa
cultura, e que é lésbica, defendendo, como nos aponta Marinho (2019), o direito
natural a mudar, a liberdade que se encontra no ato e que é preciso coragem
para enfrentar.
Referências
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade.
São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, Guacira Lopes. (Org.). O
corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
COURTINE, Jean-Jacques. Decifrar o
corpo: pensar com Foucault. MORÁS, Francisco (trad.). Petrópolis: Vozes,
2013.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir:
nascimento da prisão. RAMALHETE, Raquel (trad.). Petrópolis: Vozes, 1987.
________________ A ordem do
discurso. SAMPAIO, Laura Fraga de Almeida (trad.). São Paulo: Edições
Loyola, 1999.
________________ Segurança,
território, população: curso dado no Collège de France (1977 - 1978).
BRANDÃO, Eduardo (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2008
________________ A coragem da
verdade - o governo de si e dos outros II: curso dado no Collège de France.
(1983 - 1984). BRANDÃO, Eduardo (trad.). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
________________ O corpo utópico;
As heterotopias. MUCHAIL, Salma Tannus (trad.). São Paulo: n-1 edições,
2013.
________________ A arqueologia do
saber. NEVES, Luiz Felipe Baeta (trad.). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2017a.
________________ Microfísica do
poder. MACHADO, Roberto (org.). Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra,
2017b.
________________ História da
sexualidade 1: A vontade de saber. ALBUQUERQUE, Maria Thereza da Costa;
ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon (trad.). Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra,
2018.
GREGOLIN, M. R. Discursos e imagens do corpo: heterotopia da
(in)visibilidade na Web. In: FLORES,
G.; NECKEL, N.; GALLO, S... (org.). Análise
de discurso em rede: cultura e mídia. Campinas: Pontes, 2015.
GROS, FRÉDÉRIC. Foucault: a
coragem da verdade. GROS, FRÉDÉRIC. (org.). ARTIÈRES, Philippe... (et al);
MARCIONILLO, Marcos (trad.). São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
LARRAURI, Maite. A sexualidade
segundo Michel Foucault. MARQUES, Sérgio Rocha Brito (trad.). São Paulo:
Ciranda cultural, 2009.
LESSA, Patricia; TORTOLA, Eliane. O corpo que dança e a construção da
poética Drag King: um tango-ação. In: Periódicus.
v. 1, n. 4, 2015-2016. p. 76 – 90. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/25762/16111
Acesso em: 12/05/2020.
MARINHO, Muriel. (Des)conhecer. In:
MILANEZ, Nilton; AMARAL, Ricardo; MOURA, Ismarina (orgs.). Transexualidades: o que pode o corpo? João Pessoa: Marca de
Fantasia, 2019. p. 58 – 74.
MILANEZ, Nilton. Audiovisualidades:
elaborar com Foucault. Londrina: Eduel; Guarapuava: Ed. Unicentro, 2019.
VALE, Alexandre Fleming Câmara. O
voo da beleza: experiência trans e migração. Fortaleza: RDS, 2012.
YOUTUBOLOGIA
LINN da Quebrada, Pare Querida.
(S.1.: s.n.), 2017. 1 vídeo (2 min 56 seg). Publicado pelo canal Linn da
Quebrada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FkvAQfZ1MSk.
Acesso em: 22/05/2020.
LINN da Quebrada & Lao, fake
dói. (S.1.: s.n.), 2019. 1 vídeo (3 min 46 seg). Publicado pelo canal Linn
da Quebrada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VBK7xM6GQ10
. Acesso em: 12/05/2020.
LINN da Quebrada ft. Davi Sabbag, Tomara.
(S.1.:s.n.), 2020. 1 vídeo (3 min 23 seg). Publicado pelo canal Linn da
Quebrada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b3kO1oN_nI0.
Acesso em: 22/05/2020.
MC Linn da Quebrada, Bixa Preta,
(áudio oficial). (S.1.:s.n.) 2017. 1 vídeo (3 min 31 seg). Publicado pelo canal
Linn da Quebrada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VyrQPjG0bbY
. Acesso em: 22/05/2020.
IMAGENS:
Fake dói: videoclipe de Linn da
Quebrada e Lao (2019). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VBK7xM6GQ10
. Acesso em: 12/05/2020.
Eva – pintura de Albrecht Dürer (1504) Disponível em: https://www.historiadasartes.com. Acesso em: 20/05/2020.
Medusa
– pintura de Caravaggio (1595-1596), Disponível em: https://www.todamateria.com.br. Acesso em: 20/05/2020.
Maxmillian Gomes Schreiner: graduando em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa, licenciatura, na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Já é graduado em Comunicação Social, bacharelado de Publicidade e Propaganda, pela mesma universidade (2015). É aluno bolsista PIBIC do Programa de Iniciação Científica da UNICENTRO, desde 2019. Participa do Grupo de Estudos Laboratório de Estudos do Discurso (Leduni), tomando como base os estudos discursivos foucaultianos, para analisar os enunciados de resistência presentes nas obras de pessoas artistas travestis, transexuais e não binários, principalmente. Busca reunir os estudos sobre a teoria queer, os estudos interseccionais, para refletir juntamente aos estudos do corpo e dos dispositivos das sexualidades. Tem experiência em estudos de gênero vinculados à mídia e em produção audiovisual, nos temas cultura e narrativas ameríndias, especialmente o nhandereko guarani-mbya.
Nenhum comentário :
Postar um comentário