O Brasil de 2020 assusta. O país testemunha uma crise política e social que se desdobra por diversos setores, afetando a vida da população em suas diferentes nuances e pesando ainda mais sobre aqueles que vivem sob a exclusão provocada pelas desigualdades. Mas talvez o maior temor dos que lutaram e zelam pela consolidação de práticas de liberdade, seja perceber que a democracia está em colapso. E mais do que nunca se torna necessário entender as razões para tantos clamores pela volta do regime militar, para consigamos resistir aos avanços dos discursos totalitários. Por isso, o último episódio do Gedai Cast da temporada não poderia ser mais assertivo: “Ditadura Nunca Mais!”.
Apresentado pela coordenadora do
Gedai, professora Ivânia Neves (UFPA), o episódio foi realizado na programação
do VII Seminário de Pesquisa Gedai/Geada/Leduni. Desde a primeira semana de
julho, pesquisadores do Brasil inteiro vem debatendo e mostrando suas
investigações em diversos formatos e espaços sobre temas como interseções de
gênero, materialidades discursivas, governo da língua e ditadura. Práticas
discursivas que tomam como norte o arcabouço teórico-analítico tão atual de
Michel Foucault. Com este autor, temos refletido sobre como os conceitos de
discurso, enunciado, regimes de verdade, biopolítica, dispositivo e governamentalidade,
por exemplo, ajudam a pensar e repensar a questão que acompanha e aproxima os
trabalhos deste seminário: quem somos nós hoje?
As professoras Vanice Sargentini
(UFPB/UFscar), Tânia Sarmento-Pantoja (UFPA) e o professor Paulino Silva (UERN)
foram os convidados dessa quinta (24/07), encerrando uma temporada tão
enriquecedora de discussões do Gedai Cast. Eles contribuíram com suas
pesquisas, experiência e reflexões para construirmos alternativas, pontos de
fuga e provocar fissuras no avanço perigoso das práticas que rumam para a
instalação de uma nova ditadura na América Latina.
Por que o clamor por uma ditadura?
Diante desse cenário, a professora
Ivânia Neves iniciou a mediação questionando como podemos interpretar um pedido
de retorno da ditadura, se o desejo de segurança não seria uma suposta
justificativa para isso. Com seus trabalhos sobre discurso político e a
orientação de pesquisas que versam sobre o tema da Ditadura Militar, a doutora
em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp, Vanice Sargentini, observou que
a juventude de nossa democracia justifica algumas das tensões presentes na cena
política contemporânea. São apenas três
décadas convivendo com ela e suas ainda frágeis instituições, o que demanda um
movimento de luta para consolidar o regime democrático, para combater
simplificações e discursos únicos, nos quais a ditadura está à espreita para se
instalar.
A pergunta seminal presente em Arqueologia do Saber de por que certos enunciados surgem de
determinadas maneiras e não outros, pode ser tratada na questão: por que emerge
um enunciado como “Ditadura Militar Já?”. Precisamos nos questionar, na visão
de Vanice, nas razões para um pedido de ditadura. Para a pesquisadora, há duas
condições que explicam essas demandas. A primeira da ordem do capital,
financiador da produção de líderes, de componentes materiais para a garantia do
sucesso das manifestações em favor do regime de exceção. O clamor por um
comando de ditadura também teria como motivação, na opinião de Sargentini, o
vínculo com a obediência. Articulando Frédérici Gros, Kant e Foucault, a
pesquisadora trouxe a noção de “menoridade”, problematizada por Kant como
condicionante para a submissão. A consideração feita é o peso de ser livre,
pois sair da menoridade trata-se de assumir responsabilidades e arcar com as consequências
que nossas escolhas significam.
Obedecer e resistir complexificam a equação
nas sociedades ocidentais, que dispõem de um leque variado de formas de
obediência, sustentadas pelo dispositivo da menoridade. Obedecer nesse estado
se dá na forma profundamente desigual de relações de forças estabelecidas por
condições de submissão. A resposta pode ser tanto de resistência como de super
obediência, com o louvor à tirania. Por sua vez, a subordinação configuraria
outra forma de obediência, onde o sujeito tutela seu destino aceitando a ordem
das coisas como natural, garantindo assim sua permanência na menoridade ao delegar
ao outro o cuidado de si.
“Foucault defende uma democracia crítica, a
resistência ética, para o qual obedecer a si mesmo é resistir. Mas, para chegar
a isso, seria preciso entrar na maioridade. O que é muito difícil quando temos
um dispositivo de menoridade que mantém a sociedade a todo tempo submissa,
subordinada, conformada e que lhe dá o direito de falsas notas de desobediência
civil, ao lhe oferecer a possibilidade de pedir ‘Ditadura Já!’. Digo falsas
notas porque a desobediência é uma contra-conduta; o que se tem é mesmo é o
desejo de alguém que comande. O que vemos hoje é que as manifestações estão
apresentadas como formas de desobediência, quando na verdade elas estão mais
pra um ‘footing’, que se deslocou do shopping pra Avenida Paulista”, argumentou
Vanice Sargentini.
Política de desprezo à vida e o governo das sociedades indígenas
Se os governos militares atravessaram
de maneira violenta os corpos dos sujeitos ao longo da história da civilização,
o corpo indígena é ainda mais violado. A trajetória das ações da ditatura
brasileira marca as vidas indígenas de maneira dramática, ao negar a existência
do sujeito indígena e de sua humanidade. Com uma carreira acadêmica dedicada a
pesquisar sociedades indígenas e as ações do Estado nos anos de chumbo, o
doutor em Língua e Língua Portuguesa pela Unesp, Paulino Silva, começou a se
debruçar pelos arquivos desenterrados pela Comissão Nacional da Verdade,
pressionada por diversas organizações a investigar as violações ao indígena
brasileiro.
Ao acessar documentos da época,
Silva lança mão da teoria foucaultiana numa tentativa de compreender esse rico
material a partir de uma conduta de pensar uma política de vida, pois ao se
dedicar a discutir práticas de liberdade, Foucault estava tratando de formas de
viver. Assim, as teorias do autor francês ajudam a analisar os processos que
constituem os sujeitos. No caso das pesquisas de Paulinho Silva, “como a
experiência com a Ditadura Militar constitui o indígena como sujeito de resistência,
a partir da defesa de seus territórios”, indicou. “Temos que pensar a ditadura
como um projeto, como uma inteligibilidade política, que casou genocídios,
estupros, desterritorializações dessas populações em nome de um projeto de
desenvolvimento que está em jogo, que se fortalece no início dos anos 70,
período de endurecimento do regime”, afirmou Silva.
Um dos exemplos emblemáticos das
práticas ditatoriais do período pode ser percebido nos discursos construídos
sobre os sujeitos à margem e seus territórios. A justificativa da abertura de
estradas, criação de hidrelétricas e atuação de garimpos, sob a bandeira
desenvolvimentista, de ordem e progresso, é reafirmada no slogan “Homens sem
terra, para terras sem homens”, incentivando a migração de nordestinos para as regiões
do interior da Amazônia, interpretada como uma fronteira territorial sem
pessoas. “Inaugura o mito do despovoamento e a negação de que os índios eram
humanos, negação das comunidades como gente”, apontou Paulino Silva.
A ofensiva do governo militar
contra essas comunidades é avaliada pelo professor como um movimento bélico se
analisadas as táticas utilizadas, que visavam o extermínio dessas vidas
consideradas sem valor, como o lançamento de bombas áreas na comunidade
indígena Waimiri. “Estima-se que em 1972 havia três mil pessoas nessa
comunidade. Em 83 só tinha 350 indígenas. Grande parte dessa dizimação se deu
por meio dessa política desenvolvimentista”, lembrou o pesquisador. Número
ainda longe da realidade, pois a Comissão só conseguiu investigar 10
comunidades indígenas, da quais o número de 8 mil mortes é o resultado. “Então,
a gente vê como ainda temos muito trabalho a fazer nesse campo”, afirmou.
Na opinião de Paulinho, é
importante lembrar que o silenciamento do corpo indígena não se deu porque havia
uma organização política de opositores a ser combatida e perseguida pelo
regime. O que estava em jogo era a existência de vidas cujo valor não era
reconhecido e cuja simples existência atrapalhava os planos de progresso. Na
engrenagem alimentada pelo capital, as terras indígenas eram motivo de cobiça e
disputa. E, para possuir a terra, era necessário eliminar seus verdadeiros
donos. É essa mesma terra que vai
reconfigurar a identidade do sujeito indígena e ser ponto de encontro para a
constituição de uma organização coletiva, política das comunidades. “É quando
eles começam a entender a terra muito mais do que um lugar de natureza, mas que
tem um lugar subjetivo e político, é que a organização se fortalece”.
O corpo torturado e o corpo torturador. Notas sobre produções literárias
Se podemos analisar e tentar
compreender as marcas deixadas pela ditadura em diversas materialidades, a
memória que se construiu sobre o período também é objeto de uma intensa produção
literária. Doutora em Estudos Literários pela Unesp, a professora Tânia
Sarmento-Pantoja compartilhou como as narrativas sobre a ditadura militar tematizam
romances, contos e poesias desde o período ditatorial até o tempo presente, com
obras que acabaram de ser publicadas. Em diálogos com colegas da área, os levantamentos
de produções sobre essa temática ultrapassam mais de 200 obras. Apesar desse
número expressiva, Tânia faz uma ressalva: ainda há muito a ser pesquisado
sobre os corredores sombrios de nossa história.
Como fundamento teórico-analítico,
a pesquisadora está norteada pelo pensamento de Michel Foucault, Giorgio Agaben
e Achille Mbembe nos trabalhos que realiza e orienta. As ferramentas de análise
fornecidas por esses autores permitiram o estabelecimento de categorias e
aspectos que são recorrentes no corpus selecionado ao longo de dez, 12 anos de
pesquisa. “A presença de uma memória retrospectiva, de uma literatura que olha
pra trás pra fazer uma espécie de genealogia do que aconteceu e, ao mesmo
tempo, olha pra frente no sentido de construir uma espécie de testemunho para o
futuro daquilo que aconteceu. Outro aspecto recorrente: os desaparecimentos
forçados e outras formas de violação. A questão da sobrevivência e todas as especulações
a partir das experiências de quem sobreviveu ao regime de exceção. E existe um
outro aspecto, mais recente, que é a presença do luto, em função da derrota das
forças de resistência. Esse luto como uma reflexão melancólica”, detalhou
Sarmento- Pantoja.
A orientação de teses de doutorado
vem sendo articulada por conceitos fundamentais para entender as objetivações e
subjetivações produzidas pela experiência de um Estado totalitário. É o caso da
tese apresentada sob sua orientação “Do corpo torturado ao corpo torturador”,
de Ana Lilia Rocha. No trabalho, Rocha desenvolve o conceito de “máquina de
matar”, subsidiada pela noção foucaultiana de biopolítica. “Essa máquina de
extermínio funciona como uma grande estrutura, baseada na ideia da morte e
partir dessa ideia de morte, ela consegue construir um conjunto de categorias
que funcionariam no campo da materialidade como estratégias, como dispositivos,
cujo objetivo é o extermínio”, apresentou Tânia Sarmento.
Um outro exemplo é o foco na
responsabilidade, trazida pela tese “Testemunho e Responsabilidade: o dizer de
Semprúm sob a ética de Lévinas”, de Elielson Figueiredo, orientando da
pesquisadora. “Todo esse corpus de pesquisa, independente das fragmentações, do
caminho temático que essa literatura toma, a gente nota, como pensamento de
base, a questão da responsabilidade. É uma literatura que o tempo todo nos leva
a pensar na questão de quando o sujeito se envolve e de quando esse sujeito não
se envolve, de quando ele prefere se tornar passivo e até que ponto as narrativas colocam a própria
passividade, a própria melancolia também como uma forma de sobrevivência”.
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