Por Yorranna Oliveira
Uma
crise sanitária de ordem global cujos efeitos se infiltram na vida população. Um
presidente negacionista, anti-ciência e incapaz de governar a si mesmo. Esse é Brasil
onde viver e morrer ganhou contornos de mera banalidade frente à ausência de
políticas públicas de combate ao coronavírus e suas consequências no cotidiano
do povo brasileiro. Enquanto o país continua sem ministro da Saúde, a população
assiste entre o assombro, a revolta e o descaso a vida e a morte se converterem
em números cada vez mais crescentes.
Este
é o cenário em que é possível analisar as práticas de subjetivação e as políticas
de controle e domesticação dos corpos da população. Processos que podem ser
pensados a partir da arquitetura foucaultiana e estão inscritos no tema do 4º
episódio do Gedai Cast: “A governamentalidade e o governo da língua”. O bate-papo foi realizado pelo Grupo Gedai na
quinta, 16 de julho, na programação do VII Seminário de Pesquisa
Gedai/Geada/Leduni.
No
debate online, conduzido pela professora doutora Flávia Marinho Lisbôa (UFRA),
o conceito de governamentalidade é apresentado como central para compreendermos
o tempo, o contexto e o país em que vivemos hoje, além de reforçar a atualidade
do potencial teórico-analítico de Michel Foucault. Doutora em Linguística e
Língua Portuguesa pela Unesp, Regina Baracuhy (UFPB) pesquisa desde 2013 o tema
e sua relação com movimentos de resistência. A professora explicou como o
conceito está diretamente ligado às noções de sujeito, poder e espaço, atuando
sobre os processos de disciplinarização e normalização dos indivíduos nas
sociedades modernas:
“Para
Foucault, diz respeito à maneira de dirigir a conduta do corpo-espécie ou do
corpo populacional; governar tem a ver com políticas públicas para gerir a vida
da população. A governamentalidade vai aparecer como uma forma de governo sobre
a vida e tem como foco a população, entendida como um conjunto de indivíduos
que são controlados, que têm suas práticas normatizadas, que têm seus corpos
adestrados com vistas à máxima produtividade dentro da nossa sociedade
capitalista. Então esses indivíduos são capturados em uma rede de poder com
vistas a tornarem-se corpos dóceis e úteis”, disse Baracuhy.
Segundo
Regina, as práticas de governar a vida, na teoria foucaultiana, são exercidas sobre
dois polos: a disciplina e a biopolítica. A disciplina como estratégia
individualizante, que age por meio dos biopoderes para potencializar e
aperfeiçoar as capacidades do corpo como máquina. A biopolítica, por sua vez, controla, regula a saúde, a higiene, a alimentação,
as taxas de mortalidade e natalidade da população. Essas formas de governo,
portanto, se ligam ainda ao conceito de cuidado de si, onde o controle se
estabelece no domínio sobre o corpo.
“No
nosso país há toda uma polêmica em torno do uso da hidroxocloroquina, com o
presidente como garoto-propaganda. Foucault, quando vai falar das artes de
governar diz que é necessário primeiro governar bem a si, para depois governar
o outro. Se Bolsonaro, em plena pandemia, geralmente não usa máscara, incentiva
a aglomeração, significa que ele não consegue cuidar bem de si mesmo. E, ao não
conseguir fazer bem o governo de si, consequentemente, não consegue conduzir
bem a vida da população, que segue seu mau exemplo”, explicou Regina Baracuhy.
O resultado é o avesso da biopolítica, como os discursos de apologia à morte
que ressoaram em manifestação de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, em um
claro exercício de uma necropolítica, operando práticas a respeito de quem deve morrer e
quem deve viver.
O governo da língua e a imposição de modos de vida
Superar
a noção estruturalista de língua, legada por Saussure aos estudos da linguagem,
é um importante movimento para fazer pensar sobre o governo da língua, a partir
da Análise do Discurso. Essa marcação é necessária na avaliação da professora
Ivânia Neves (UFPA). Doutora em Linguística pela Unicamp, Ivânia tem em sua trajetória
acadêmica um longo trabalho com sociedades indígenas, onde a fronteira cultural
e linguística atravessa a pesquisa. Nesse processo, em suas pesquisas e orientações
de projetos, por um período os aportes da Sociolinguística foram tomados como referência. No entanto, os caminhos teóricos não davam conta dos objetivos propostos nas análises e a noção de língua precisou ser percebida por uma outra
perspectiva.
“A gente está pensando a partir do governo da língua e também a
partir do discurso, que parece óbvio e não é. Então essa definição de governo
da língua vai pensar na questão da governamentalidade, não do governo de um
único soberano, mas como que se constrói o sujeito, o sujeito só existe pela
linguagem. Eu vou insistir na língua. Mas na língua pensada a partir de
Foucault, que não é uma estrutura linguística. A língua é muito mais do que
isso. A língua é quem faz o sujeito ser sujeito. E a língua tem que ser
entendida como uma forma de vida, como uma forma de ser”, afirmou Neves. E, nessa forma de concepção, a língua sempre foi objeto de interesse dos governos.
A história do Brasil é marcada por essa
relação de poder sobre a língua e, consequentemente, sobre a vida.
A
normalização do português como língua nativa brasileira em detrimento das
línguas indígenas evidencia um dos lugares em que o governo atua, isto é, o da
subalternização, das línguas em disputa na engrenagem da colonização,
seja ela bélica, cultural ou econômica. Um exemplo em nossa história colonial é a atuação de Marquês Pombal na Amazônia e sua “consciência de governo da língua”,
questionando em documentos históricos o número de indígenas que falavam e
escreviam português. Orientando formas
de interferir na vida linguística, Pombal mobilizou uma verdadeira ofensiva para impor às populações
indígenas a língua do Império. “Já estava claro que se o português não se
impusesse como língua da colonização, o Grão Pará e o Brasil não seriam colônias
portuguesas. Impor uma língua, é impor um modo de vida, impor uma cosmologia. É
você interferir em quem é o sujeito. Quando eu faço alguém falar a minha
língua, eu estou interferindo em quem essa pessoa é, nas formas de ser”.
Nesse campo de imposições e subalternizações, o
governo da língua também se localiza em uma perspectiva econômica, como a globalização do mandarim
enquanto língua dos negócios da China, desencadeando uma imposição aos
executivos do mundo todo de dominaram a língua e, como resultado, a cultura a
que ela pertence. Mas quando se trata de
línguas minoritárias, o movimento é bem diferente. “Quando a gente compara com
o mandarim, a gente tem uma política hoje, sobretudo no governo Bolsonaro, não
só de dizimar as línguas indígenas. Nunca se estivesse interessado em dizimar
as línguas indígenas. A empreitada era dizimando as línguas, eu dizimo as
subjetividades. As pessoas e seus descendentes podem até ficar vivos, mas se
eles não conhecem a língua, se eles não
conhecem a cosmologia, você vai ter um outro tipo de sujeito.
A
ideia de língua, como uma forma de definir quem é o sujeito, permite ainda compreender fenômenos como as fake news e sua potência de proliferação, relevando o perfil de
quem disseminar e consome, ainda que ciente das mentiras presentes nos conteúdos. “As
pessoas que consomem aceitam as fake news, porque elas são esse tipo de
sujeito. Ela caracteriza esses sujeitos”, ratificou Ivânia.
O disposto escolar-republicano e a língua como instrumento de conquista
Precursora
dos estudos discursivos foucaultianos no Brasil, a professora Rosário Gregolin
(Unesp) tem trabalhado em suas pesquisas a instalação do dispositivo
escolar-republicano, contextualizado às noções de governamentalidade e governo
da língua. A noção de dispositivo - tratada por Michel Foucault não em um livro
específico, mas em uma série de entrevistas e cursos -, complexifica e
aprofunda as análises sobre o poder, ampliando ainda as materialidades discursivas
verbais e não-verbais. Pertencente à genealogia poder, o conceito de dispositivo
elabora o poder como uma configuração “complexa e móvel”, muito além do
confronto entre duas classes, em que Foucault nos instiga a pensar o poder
deslocado de suas teorias clássicas, questionando como ele é exercido.
Dispositivo
em Foucault tem cinco características principais: um conjunto heterogêneo; uma rede que liga todos os elementos que compõem esse conjunto, um certo
tipo de jogo, uma resposta às urgências da história e uma certa
configuração, que nunca é estável, pois está sempre se transformando. Nesse
contexto, o dispositivo colonial atua sobre as línguas indígenas no Brasil a
partir do século 16, com a produção de
gramáticas das línguas neolatinas. “Por que essas gramáticas da língua? Porque a
língua é um instrumento de conquista. O governo da língua vai depender do
desenvolvimento desses instrumentos, que são as gramaticas, para fixar as regras
da língua para ser ensinada”, argumentou Gregolin.
Como
estrutura sempre em movimento e em reconfiguração, o contexto histórico do Brasil
pós-independência faz emergir o disposto escolar-republicano para atender às
novas demandas da sociedade em construção. “Uma reconstrução da
nacionalidade, associada aos ideais positivistas de ordem, progresso, higiene
e civilidade. É preciso inscrever no projeto arquitetônico das escolas, no corpo
docente e no corpo discente a ideia de uma nação moderna que constituía o Brasil
naquele momento, que passava por uma transformação política, econômica, com o Sudeste
e o Sul se industrializado; na forma do trabalho, com a chegada dos
trabalhos europeus para substituir a mão de obra escrava”, pontuou Rosário
Gregolin.
Na análise de Rosário, todo
o reordenamento urbanístico das cidades, onde o dispositivo escolar-republicado
se instalou, localiza a escola
como um lugar estrategicamente construído para promover a desejada reforma na
sociedade. Nesse aspecto, os ideias da república que nascia eram investidos não
apenas na arquitetura como também nas práticas de ensino da língua no interior
dessa escola. “A leitura se dava a partir de antologia, como as de poesia produzidas
por Olavo Bilac. Desde o início se constitui um cânone escolar: o conjunto de
textos que deve ser lido. Um nacionalismo exacerbado vai aparecer nessa poesia
infantil de Olavo Bilac. Livros de leitura que eram dirigidos aos meninos, que
tinham também aulas de aritmética, enquanto as meninas tinham de bordado, economia
doméstica e balé. O próprio currículo escolar atuando para a constituição das
subjetividades e repatriação dos papéis em nossa sociedade”, acrescentou.
Esse
dispositivo também contribuiu para a valorização da escrita como tecnologia, bem como da adoção de práticas como a de caligrafia, altamente valorizadas no período,
com a criação das cartilhas e até de equipamentos para aperfeiçoar a escrita,
em uma demonstração do governo do corpo para se poder governar a língua. Todas
essas técnicas, na avaliação de Rosário Gregolin, vão produzir no imaginário
nacional, a imagem de um Brasil branco, ansioso por se aproximar da Europa, o ideal
de civilidade e disciplina. Para isso, um padrão linguístico precisou se
estabelecer, onde se instaurou uma língua homogênea para regular as subjetividades nesse dispositivo
escolar. “E essa escola é para determinadas frações da nossa sociedade, e vai ser
extremamente excludente. É um dispositivo que nasce para
excluir, que vai orquestrar a necropolítica tanto das línguas quanto dos
sujeitos, que vão estar à margem desse dispositivo”.
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