A Heterotopia do Cinema como lugar de memória da Ditadura Civil-Militar no Brasil
Rafael Marcurio da Cól
Orientadora: Dra. Rosário Gregolin
Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa - Unesp Araraquara
VÍDEO DE APRESENTAÇÃO
Este trabalho é derivado de nossa tese de
doutorado que tem como objetivo central, compreender o cinema nacional como um
lugar de memórias, onde as resistências à Ditadura se refugiam e se
reconstroem, percebendo, com isso, os jogos e as estratégias de funcionamento
(lembranças e esquecimentos) desta materialidade. Deste modo, faremos um breve
panorama pelos filmes que tratam sobre a Ditadura para analisarmos as relações
entre história e memória com o cinema.
Para isso, nos guiamos
pelas seguintes questões: quais os critérios para a censura do cinema
brasileiro durante o período da Ditadura Civil-Militar (1964 – 1985)? E, após a
promulgação da Lei da Anistia em 1979, houve alguma flexibilização nas formas
de censura de filmes que falavam sobre temas como a tortura, os assassinatos de
ativistas e os súbitos desaparecimentos, dentre outros temas que só foram
ganhar espaço no cenário nacional 26 anos depois, com a criação da Comissão da
Verdade?
As
respostas para essas perguntas nos fazem refletir sobre a produção, circulação
e recepção da sétima arte no Brasil durante o período ditatorial, após a publicação
da Lei da Anistia em 1979 e depois da promulgação da constituição de 1988. Além
de refletirmos sobre o cinema como lugar de emergência das memórias sobre a
Ditadura Civil-Militar no Brasil, bem como percebermos as redes de dispositivos
que imbricam no processo cinematográfico e sua importância na constituição da
identidade nacional com base nos estudos discursivos de Michel Foucault.
Desse
modo, pensaremos como a arquegenealogia foucaultiano nos auxilia a pensar a
materialidade audiovisual do cinema, bem como suas subjetividades, verdades e
resistências. Consideraremos o cinema como uma heterotopia, a fim de pensarmos
nele como um espaço de outros espaços, que nos evoca histórias, memórias,
verdades dentre tantos outros elementos que constituem a cultura de uma nação.
Para tanto, é necessário
ressaltar que pensaremos em um cinema político, que, por definição, é visto
como aquele que leva as pessoas a fazerem perguntas, considerar questionamentos
e pressupostos estabelecidos pelo próprio cinema, além do seu papel como
indústria de entretenimento e um espetáculo de efeitos políticos.
A
censura no cinema foi um elemento essencial para a manutenção da Ditadura no
Brasil por tantos anos, pois com ela o Estado pôde anular os pilares que
constituem a identidade nacional e implantar suas próprias formas de pensar a
cultura. Foi desta maneira que a censura do cinema prejudicou a formação de uma
geração e a afastou do cinema nacional. O funcionamento deste dispositivo de
censura do Estado brasileiro variou, destacaremos adiante as articulações
feitas por este, durante todo o período de 21 anos de governo ditatorial.
Começaremos com uma
explanação sobre a produção cinematográfica brasileira durante o período
ditatorial, primeiramente, do período de 1964 a 1968, que consideraremos do
momento do golpe de Estado até a promulgação do Ato Institucional nº 5, que
institucionalizou a censura no Brasil. É preciso analisar que durante este
período, temos em voga no Brasil a estética do Cinema Novo de 1960 a 1970, que
tem em sua raiz advinda da Nouvelle Vague e sua característica principal
é ser um cinema com engajamento político. Além desta vertente, o cinema
brasileiro dos anos 70 a 80 também contava com produções erótico-populares
conhecidas pejorativamente como pornochanchadas.
Levaremos em consideração filmes
com teores políticos dentro destes dois aspectos, os quais tiveram mais relevância
em cada época, tanto por conta da sua estética, quanto pelos conteúdos de suas
diegeses e os que, de alguma forma, corroboram para a manifestação das formas
de resistências contra a Ditadura. É necessário compreender que dos filmes
ditos da pornochanchada, levaremos em consideração apenas os citados pelo
documentário, disponível na NETFLIX, HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (não)
CONTAVA (2018).
Durante esta primeira
periodização, com base na entrevista dada por Leonor Souza Pinto à revista Pesquisa
FAPESP denominada “Matou a Liberdade e foi ao cinema” (jan. 2006), a
especialista em censura do cinema nos anos da Ditadura diz que até o ano de
1967, este mecanismo de manutenção do governo ditatorial era moralista, ou
seja, tinha a sua base na sociedade conservadora e na Igreja, tirando de vista
o que pensava ser inapropriado. Segundo a pesquisadora, a censura nesta época
era feita por “esposas de militares, ex-jogadores de futebol, classificadores
do Departamento de Agropecuária, contadores, apadrinhados”, isto quer dizer que
a sociedade civil estava engajada em censurar tudo aquilo que achava
“impróprio”. Podemos observar que o sistema era bem rudimentar, pois, ainda
segundo a pesquisadora, “Durante a sessões da censura (...) tocavam uma sineta
e o projecionista colocava um papel no trecho a ser cortado.”.
O primeiro filme em
resposta ao golpe de 64 é O Desafio (1965) do diretor Paulo Cesar
Sarraceni. Já nos primeiros minutos do filme, é possível perceber o
descontentamento de Marcelo e de Ada em relação ao golpe e ouvimos um
pronunciamento de cassação de direitos políticos de homens públicos em meio ao
que parece ser um programa de rádio. Durante todo o filme, percebemos que este
casal de classe média-alta se sentia incomodado por não poderem se expressar
contra o golpe e como isso afeta também a relação amorosa entre os dois.
Segundo a pesquisadora
Leonor Souza Pinto, a partir de 1966, os censores do governo ditatorial são
trocados aos poucos por militares, que fazem cursos, pois os pareceres começam
a ser mais técnicos, além de passarem a vetar expressões políticas, mas sem
deixar de lado os comentários sobre a moralidade.
Os filmes de Glauber
Rocha do qual destacaremos, nesse momento, Terra em transe (1967) também
trazem reflexões alegóricas sobre o golpe de 64. E o filme teve o seguinte
parecer:
Partindo da ficção,
Glauber consegue fazer do irreal uma ideia mais perfeita que o original.
Contudo o tema não agradará ao público leigo pela sua complexidade e mais ainda
pela montagem elíptica da narrativa. Trata-se de um filme destinado a uma elite
intelectualizada, pois sua construção e expressão é por demais cartesiana,
buscando algo abstrato para expressar um problema político (Pesquisa FAPESP,
jan. 2006)
Neste
primeiro parecer, o filme foi liberado. No filme, Paulo Martins é jornalista e
poeta ligado ao governo de Porfírio Diaz, político conservador, que é eleito
senador. Com a sua mudança para Alecrim, Paulo conhece Sara, a ativista, e
começam a apoiar o vereador, Felipe Vieira, o qual aparentava ser mais
progressista. No entanto, não consegue segurar a pressão dos apoiadores de sua
região e não faz nada para ajudar o seu povo. Frustrado, Paulo volta para a
capital e junto com Vieira começam se articular politicamente para derrubar
Diaz, que se candidata à presidência, mas é traído por Fuentes que tinha um
acordo com Diaz. Após este desfecho, Paulo parte para a luta armada. Depois de
alguns meses do primeiro parecer, por tratar de “conteúdo ideológico”, um
segundo parecer foi emitido, dizendo que o filme deveria ser vetado em todo
território nacional.
A segunda
periodização que abordaremos nesta pesquisa, é iniciada com promulgação do AI-5
em dezembro de 1968, ano que foi institucionalizada a censura não só no cinema,
mas em todas as áreas da cultura brasileira, até a instauração da Lei da
Anistia em 1979. Nesse período, o recrudescimento da censura política se
intensificou e isso proporcionou a emergência do cinema erótico-popular
brasileiro, alguns estudos () apontam que essa possibilidade foi uma estratégia
para manter a população em geral longe do cinema nacional.
Dentre os
filmes da dita pornochanchada, temos vários, de acordo com o documentário, HISTÓRIAS
QUE NOSSO CINEMA (não) CONTAVA (2018), que abordavam
temas políticos, dando à temática uma abordagem satírica, temas como a tortura,
os movimentos dos trabalhadores, infiltração comunista no Brasil etc. Durante os anos 70, estas eram as formas de resistências
que eram possíveis emergir no país, visto que a censura vetava qualquer
referência ao governo e suas críticas. Os filmes como Eu transo, ela transa
(1972) de Pedro Camargo, Elas são do baralho (1977) de Silvio de Abreu, E
agora José? A tortura do sexo (1979) de Ody Fraga, não se tratam de filmes
inteiramente políticos, mas trazem em determinadas cenas críticas à Ditadura,
ou ao mesmo subvertem os valores impostos pela censura.
Apesar da
forte censura, os filmes que foram vetados no Brasil eram ovacionados nos
festivais no exterior. Isso fez com que alguns filmes se salvassem do
esquecimento. Filmes como Paula: a história de uma subversiva (1979) é
um dos filmes pioneiros ao se tratar da Ditadura Civil-Militar abertamente,
abordando temas como a tortura, os sequestros e a repressão sofrida por vários
membros da sociedade civil, expondo, assim, uma memória coletiva sem citar
diretamente nenhum dos heróis que lutaram contra o governo antidemocrático.
Após a promulgação da Lei
da Anistia teríamos uma abertura política lenta e gradual até o fim oficial do
período ditatorial no ano de 1985. No entanto, sabemos que até a instauração da
nova constituição no ano de 1988, este período ainda estava longe de ser um
ideal democrático. Neste período, temos o lançamento do filme, Pra frente
Brasil (1982), um dos filmes sobre a Ditadura mais importantes de sua
época, tanto pelo seu reconhecimento e o processo de censura, quanto pela sua
temática.
Depois de 1988, emergem
novos filmes sobre a temática dos anos de chumbo, nesse momento, sem a
preocupação de velar as críticas e não mencionar indivíduos que sofre(ra)m com
as mazelas da Ditadura. Um desses filmes é o Que Bom Te Ver Viva (1989)
da diretora Lúcia Murat, que conta as memórias de mulheres que lutaram contra a
Ditadura, por meio de depoimentos mesclados com encenações do cotidiano destas
mulheres, cenas estas interpretadas por Irene Ravache.
A partir dos anos 90, os
romances memorialistas e as biografias dos heróis da Ditadura, que foram
lançados durante os anos 80, começaram a ganhar as telonas, filmes como: Lamarca
(1994), O que é isso, companheiro? (1997), Batismo de Sangue
(2007), Zuzu Angel (2006), Marighella (no prelo). Outro filme que
segue as mesmas direções da obra de Murat, na qual mescla depoimentos de
ex-combatentes e encenações das lutas enfrentadas por eles, mas só é lançado
nos anos 2000 é o filme, Araguaya: conspiração do silêncio (2004).
Em suma, para analisarmos
o cinema nacional como um lugar de memória é necessário perceber as diversas
formas de construção dessas materialidades e o contexto que possibilitou ou não
a emergência dessas memórias. Vemos que durante o período ditatorial, tínhamos
alguns ecos e lampejos de resistências, no entanto, só haverá um cinema sobre a
ditadura, explicitamente, ao final dos anos 70 e começo dos anos 80. Antes
disso, temos as obras do diretor Glauber Rocha, que alegoricamente criticava os
rumos da política nacional e alguns outros filmes que mencionavam a história do
seu contexto de produção. Gradualmente, vemos uma explicitação das críticas e
com melhor clareza as formas de resistências à ditadura, além dos memoriais aos
seus heróis e as denúncias aos seus torturadores.
E, atualmente, depois de
tudo que a história do Brasil nos mostra, vivemos uma censura explícita de um
filme, que já ganhou vários prêmios internacionais, mas que ainda não teve sua
estreia no Brasil. O filme de Vagner Moura teve problemas com a Agência
Nacional do Cinema pouco antes da sua estreia nas telonas nacionais em novembro
de 2019, mês da consciência negra. Diferentemente da Ditadura, o governo
Bolsonaro faz uma censura velada ao filme, pois tornaram o filme
burocraticamente impossível de ser lançado. No entanto, depois deste problema com
a Ancine, o filme tem nova data, 14 de maio de 2020, mas por conta da pandemia
ainda não teve divulgado uma outra data.
Portanto, vemos que a
partir de um olhar para história, podemos compreender o contexto de emergência
desses filmes e a possibilidade de emergência destas memórias que se manifestam
não apenas em formas de depoimento como vimos em filmes a partir de 1989, mas
desde o começo da Ditadura, em uma emissão de rádio, ou em uma folha de jornal,
ou até mesmo em um adesivo atrás de um carro. Isso nos mostra retratos do país
neste momento de sua dura história, que resistiram à censura, à tortura e hoje
nos permite reconstruir essas memórias e as expressá-las com todas as letras.
BIBLIOGRAFIA
a) Filmes
ARAGUAYA –
Conspiração do Silêncio. Produção de Ronaldo Duque. Rio de Janeiro: Globo
Filmes, 2004. 1 DVD.
BATISMO de sangue.
Produção de Helvécio Ratton. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2007. 1 DVD.
E
AGORA José? A tortura do sexo, Produção de Ody Fraga. Rio de Janeiro:
Cinemateca brasileira, 1979.
ELAS
SÃO do baralho. Produção de Silvio de Abreu. Rio de Janeiro: Cinemateca
brasileira, 1977.
EU
TRANSO, ela transa. Produção de Pedro Camargo. Rio de Janeiro: Cinemateca
brasileira,1972.
HISTÓRIAS QUE O
NOSSO CINEMA (não) CONTAVA. Produção de Fernanda Pessoa. São Paulo: Netflix,
2018.
LAMARCA. Produção
de Sergio Rezende. Rio de Janeiro: RioFilme, 1994. 1 DVD.
MARIGHELLA.
Produção de Wagner Moura. São Paulo: Globo Filmes, no prelo. 1 DVD.
O DESAFIO.
Produção de Paulo Cesar Sarraceni. Rio de Janeiro: Cinemateca brasileira, 1965.
O QUE É isso,
companheiro? Produção de Luiz Carlos Barreto. Rio de Janeiro: RioFilme, 1997. 1
DVD.
PAULA:
a história de uma subversiva. Produção de Francisco Ramalho Júnior. São Paulo:
Oca Cinematográfica.1979.
PRA FRENTE Brasil.
Produção de Roberto Farias. Rio de Janeiro: Produções R.F Farias, 1982.
TERRA em transe.
Produção de Glauber Rocha. 1967.
ZUZU Angel.
Produção de Sérgio Rezende. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2006. 1 DVD.
b) Bibliografia
FOUCAULT,
Michel. A arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005.
_____.
A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
_____.
“A Governamentalidade”. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
PESQUISA
FAPESP. “Matou a Liberdade e foi ao cinema”. In: Pesquisa FAPESP. Ed.
119, jan. São Paulo: FAPESP, 2006. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/matou-a-liberdade-e-foi-ao-cinema/ .
Doutorando e mestre do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp -
Araraquara. Possui graduação em Letras (Licenciatura Plena em Línguas Portuguesa e Francesa) pela UNESP - Faculdade de Ciências e Letras de Assis (2013). É membro do GEADA (Grupo de Estudos de Análise do Discurso de Araraquara), com área de pesquisa em Letras, com ênfase, em: análise do discurso, filosofia da linguagem, canção, cinema e literatura. E atuação em: língua portuguesa, produção de texto, interpretação, literatura brasileira e língua francesa. Currículo Lattes.
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