Essa terra aqui, esse rio aqui, o Karosakaybu deixou pra nós: memórias Munduruku

Benjamim da Costa Araújo
Orientadora: Dra. Ivânia dos Santos Neves
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará


   VÍDEO DE APRESENTAÇÃO      
                                                 

[...] se eu quero ir à lua, eu preciso da ciência moderna,
mas se eu quero preservar a biodiversidade da Amazônia
eu preciso do conhecimento indígena.
Boaventura Souza Santos


O ponto de partida deste projeto de pesquisa está nas narrativas do povo indígena Munduruku do médio Tapajós – envolto em uma história de décadas de ameaças a seus territórios e a sua cultura –, e em que se pretende investigar as marcas discursivas de identidade e de resistência nas suas relações interétnicas, podendo-se verificar as particularidades de seus saberes e de sua organização de mundo bem como se perceber a produção de sentidos presentes nestas narrativas tradicionais – sejam orais, do corpo, da ação (autodemarcação de terras) e até escritas, mas estas mais contemporâneas.

Seja como for, os conhecimentos e o modo de vida da etnia Munduruku seguem uma via de resistência (construindo e sendo construído sua história), e rompendo os silenciamentos de um discurso oficial em nossa sociedade (Estado), através de manifestações de denúncias (os processos de antropização), de contestações (às intenções dos grandes empreendimentos dominantes na região) e de reivindicações de seus direitos diante de uma trágica conjuntura sócio-histórica (construções de barragens, de estações de portos, de estradas etc, como partes de um megaprojeto desenvolvimentista) por que atravessa a vida nas margens do rio Tapajós.

Sob a perspectiva do enfoque dos Estudos do Discurso com Michel Foucault no Brasil, propõe-se verificar a “memória como processo narrativo”, problematizando o passado (as tradicionais narrativas do povo Munduruku) a fim de desvelar suas camadas arqueológicas (tornar visíveis os acontecimentos) na constituição dos sentidos. Somam-se a esta proposta as contribuições dos estudos culturais de Stuart Hall e de outros estudiosos de teorias da cultura, no que diz respeito às considerações sobre identidade, uma vez que as aldeias da etnia Munduruku se veem imersas (afetadas ou deslocadas) no advento do processo da globalização.  

A partir dos estudos identitários em torno do povo Munduruku, esta pesquisa encontrou inicialmente registros de suas narrativas no “Estudo sobre a Mitologia dos Índios Mundurucus – à guisa de introdução”, organizado pelo frei Valter Kempf, da Ordem de Frades Menores (Petrópolis-RJ). A partir dos relatos e dos depoimentos de viajantes e de informantes na região da Bacia do Tapajós (século XIX), é possível reconstruir de alguma maneira uma memória desta sociedade um pouco menos atravessada pelo dispositivo colonial. Esta obra foi publicada em abril de 1945.

Tais estudos referem-se às narrativas indígenas como “lendas e tradições” ou ainda como “textos míticos”, inclusive com possíveis influências de elementos do Cristianismo em razão do processo de catequização pelos frades, capuchinhos e franciscanos desde o séc. XVIII. Entre as narrativas ou “episódios míticos”, o frei Kempf apresenta-nos o “herói de cultura” ou “civilizador” Karu-Sakaibê (atualmente registra-se: karosakaybu), e conforme seu texto:

Os primeiros homens que apareceram sobre a terra fundaram a maloca de Wakupari. Certo dia, Karu-Sakaibê apareceu entre eles e ensinou-lhes a caça superior; até então só haviam praticado a caça inferior. Karu-sakaibê não teve pai nem mãe, mas tinha um filho que se chamava korum-tahú [...]
Karu-sakaibê viu as lágrimas do filho e ficou com grande cólera. Fincou em torno da maloca de Wakupari as penas que tinham lançado a korum-tahú os índios ingratos. De súbito com um gesto converteu em porcos bravios todos os habitantes de Wakupari, homens e mulheres velhos e crianças.
[...]
Fez crescer montanhas transformando em morros as penas que tinha fincado em torno da maloca, abriu abismos para assustar a carreira de porcos. Tudo em vão. Por fim Karu-sakaibê fêz da fruta do Tucumã um grande rio: o Tapajós, para impedir a fuga dos porcos que lhe iam raptar o filho. [grifo meu]
Para o frei Kempf, o aparecimento de Karu-Sakaibê revela dois acontecimentos importantes: um estágio mais avançado de economia [caça superior] e o início de uma série de transformações na natureza [abismos/ montanhas/ morros/ porcos bravios/ rio], caracterizando-o mesmo como um ser superior/sobre-humano. Este mesmo “herói de cultura” também se destaca em Murphy (1958), que se refere a ele como “hochgott” [deus superior]. E isto é bem próprio de como os Munduruku acreditam quando narraram/narram sobre Karosakaybu e tudo em seu entorno – território, florestas, natureza. “Para nós, não é mito e nem é lenda, é real. Este é um território sagrado, onde ocorreu a passagem dos porcos”, comenta Jairo Saw Munduruku, liderança do Movimento Munduruku Ipereg Ayu.
Ressalte-se ainda nesta narrativa dois outros aspectos: de um lado o caráter de uma atividade educativa de Karu-Sakaibê para com os primeiros homens, ensinando-lhes técnicas mais avançadas de caça; e outro aspecto que se acresce também é o familiar expresso na figura de uma paternidade diante de um filho (Korum-tahú) provavelmente adotivo.
Muitas décadas depois [pode-se dizer até séculos] e os Munduruku sempre viram/vêem assim Karosakaybu: um deus, um líder guerreiro a inspirar a luta de resistência desse povo pelo seu território, fortalecida na voz do cacique Juarez Munduruku num ato de autodemarcação na Terra Indígena (TI) Sawre Muybu, no Pará, iniciada em 2014, diante da negativa da Funai:

A gente não tá emprestando essa terra. Nós somos brasileiros verdadeiros e donos da nossa terra. Não estamos pedindo que o governo demarque, essa terra não é deles para dar, é nossa. Essa terra aqui, esse rio aqui, o Karosakaybu deixou pra nós [...] [grifo meu] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/547617-a-encruzilhada-munduruku-depois-de-seculos-defendendo-o-tapajos-barragens-ameacam-os-vivos-e-perturbam-os-mortos
                    
                               Figura 1

Munduruku colocaram placas da terra indígena em pontos estratégicos de seus limites. 
Foto: Bárbara Dias/Cimi Norte 2 Fonte.


O atual conflito entre os Munduruku e os pariwat – aqui representado pelos governantes e pelos segmentos empresariais – tem como cerne o Tapajós, este mesmo rio que, nas narrativas indígenas, surge em meio também a um conflito em Karosakaybu e os “primeiros homens”, e que para impedir-lhes a fuga “fêz da fruta do Tucumã um grande rio: o Tapajós”. Muitas águas já se passaram, mas o conflito continua emergindo como uma pedra lançada – e percorrendo horizontalmente – sobre estas águas.
Percebe-se que essa “voz do cacique” emerge para além de um simples ato de fala, constituindo-se, ao lado de tantos outros enunciados[1] de seu povo. Neste sentido, para Michel Foucault podemos entender estes enunciados como materialidades de um discurso – que tem em si a ideia de percurso em movimento –, uma vez que há um intenso enlace de memórias entre essas duas narrativas, e que se permitem a atribuições de sentido. Quando o cacique afirma em seu enunciado que “karosakaybu deixou pra nós” é o mesmo que evidenciar o sentido de herança da propriedade da terra e do rio Tapajós. Embora em emergências históricas bem diferentes, este acontecimento é bastante semelhante com a narrativa bíblica de Canaã, a “terra prometida” ou dada por Deus ao povo israelita – “a terra que lhes será sorteada como herança”.
Em recente acontecimento envolvendo as obras para a construção de diversos portos de transbordo e carga no rio Tapajós, os Munduruku aliados[2] com outras etnias, grupos sociais e movimentos sociais denunciaram a ausência de consulta prévia, livre e informada – tal como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – para o licenciamento destas obras, às quais são veemente contrários. Na ocasião os indígenas divulgaram a “Carta do povo Munduruku contra os portos no Tapajós”, em que está evidenciada mais uma vez a presença de karosakaybu:


Mas as marcas dos povos indígenas e dos ribeirinhos estão por toda a Amazônia. Por isso aqui tem Terra Preta (Katõ), tem árvores, plantas e animais de todo tipo. As marcas de Karosakaybu e os desenhos de Muraycoko mostram que somos os antigos dessa terra. [grifo meu]


Quando escrevem “as marcas de karosakaybu”, os Munduruku reivindicam um indicativo de sua identidade e de sua territorialidade como “os antigos dessa terra”, como povos originários dessa Amazônia, e que apoiados em sua religiosidade orientam-se para com sua visão de mundo nas diversas relações de organização social, apesar do contato e das influências das religiões cristãs.

REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 7.ed., 2008.

______________, A ordem do discurso. aula inaugural no college d'e france, Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. Edições Loyola, 3ª edição: São Paulo, Brasil 1996

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro-11. ed. -Rio de Janeiro: DP&A, 2006. Disponível em: https://leiaarqueologia.files.wordpress.com/2018/02/kupdf-com_identidade-cultural-na-pos-modernidade-stuart-hallpdf.pdf

KEMPF, Valter. Estudo sobre a mitologia dos índios mundurucus – à guisa de introdução. Arquivos do Museu Paranaense, Belém, vol. IV: 249-290. Disponível em: http://biblioteca.funai.gov.br/media/pdf/REVISTAS/arquivosdomuseuparanaense/MFN-42312.PDF

MIOTTO, Tiago. Ocupar e resistir ao modo Munduruku. Porantim, Brasília-DF • Ano XXXVIII • N0 390, p. 08, Novembro 2016. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Porantim-390_Nov-2016.pdf

MURPHY, F. Robert. Mundurucú Religion, Berkeley:  University Of California Press and Los Angeles, p. 12, 1958. Disponível em: https://digitalassets.lib.berkeley.edu/anthpubs/ucb/text/ucpo49-002.pdf

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. 8. ed. Campinas: Pontes, 2009.

SANSON, Cesar. A encruzilhada Munduruku: depois de séculos defendendo o Tapajós, barragens ameaçam os vivos e perturbam os mortos. 2015. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/547617-a-encruzilhada-munduruku-depois-de-seculos-defendendo-o-tapajos-barragens-ameacam-os-vivos-e-perturbam-os-mortos








[1] Como o discurso é uma prática que articula/relaciona a língua com “outras práticas” em nossa sociedade, temos no “ato de autodemarcação territorial” um outro tipo de enunciado.
[2] Ao longo da história muitas foram as alianças do povo Munduruku e outras etnias, até mesmo com o pariwat (não indígenas) quando se trata de seus interesses. Com forte tradição guerreira, estes indígenas se organizam e fazem alianças, colocando-se numa situação de “negociação” em razão de uma coletividade, para enfrentar, neste episódio, o governo brasileiro.




Benoni Araújo é graduado em Letras (2015) e mestrando em Estudos Linguísticos (PPGL-UFPA), publicou "não por acaso dispersos" (ed. cão guia) em 2008. Editor da revista literária "plagium", tendo sido contemplado no Prêmio de Pesquisa e Experimentação Artística 2018 (FCP). Currículo Lattes. 

Um comentário :

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