Mulheres na cultura popular: relações de gênero e poder no Arraial do Pavulagem
Yorranna Suilan Oliveira Barbosa
Orientadora: Dra. Ivânia dos Santos Neves
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará
Vídeo de Apresentação
A dominação de nossos corpos e o controle de nossas vidas não acabaram com o fim da exploração portuguesa no território hoje conhecido como Amazônia brasileira, no qual a cidade de Belém do Pará está localizada. A narrativa única dos legados coloniais segue construindo regimes de verdade na história dessa cidade e de seus moradores e moradoras, autorizando discursos, silenciando outros. Esse aparato de consentimentos e interdições legados pela colonização é definido pela pesquisadora Ivânia Neves (2020) como dispositivo colonial.
Pensar a partir dessa herança é
compreender que ela nos atravessa e forja nossos modos de ser e viver, e
persiste em nosso tempo. O disposto colonial continua operando e se atualiza em
diferentes linguagens, sinalizando as hierarquias e classificações que
sustentam, reproduzem ou transformam as relações de poder. E se o passado ainda
está presente em nossos discursos, produzir novos sentidos para o futuro é uma
ação urgente. É nessa emergência que situo o meu olhar e minhas práticas como
mulher, jornalista e pesquisadora, em uma tentativa de contribuição para
pluralizar as narrativas que constroem as relações de gênero no Arraial do
Pavulagem, movimento cultural criado em Belém em 1987.
Trabalhei como coordenadora de comunicação por sete anos no Arraial do Pavulagem, período em que
construí uma relação de afeto com o universo da quadra junina criado pelo
grupo, mas no qual também observei tensões sobre os papéis desempenhados pelas
mulheres no movimento cultural. Quando comecei a ter contato com leituras da
teoria feminista, da análise do discurso, e mais recentemente com as discussões
sobre decolonialidade, eu pude dar novos sentidos para as inquietações e
incômodos provocados por esses acontecimentos, e olhar para outras perspectivas
até então invisíveis para mim.
Nesse cenário de atravessamentos e (des) encontros busco
entender e responder o que as mulheres dizem sobre si nas práticas do Arraial
do Pavulagem, analisando ainda o que se diz sobre elas. Por isso, selecionei como
enunciados para análise entrevistas, letras de música, fotografias e o corpo.
Com a escolha dessas materialidades, objetivo compreender como as operações a
respeito das noções de discurso, sujeito, verdade, gênero, raça e poder remodelam
as construções discursivas sobre sujeitas no Arraial do Pavulagem e,
consequentemente, como interferem nos papéis desempenhados pelas mulheres nesse
movimento cultural. Articulo a essas noções o conceito de etniCidades,
trabalhado por Ivânia Neves (2020) com a marcação maiúscula do C para pensar a
pluralidade étnica presente nas cidades. Sigo os rumos desse conceito para pensar os processos de apagamento e
visibilidade dessas pluralidades no discurso “pavuleiro”.
Arraial do Pavulagem e a cultura popular em
cena
Em atividade há 32 anos, o Arraial
é um dos mais conhecidos grupos culturais de Belém, com ampla cobertura na
mídia local de suas ações, em particular dos cortejos de rua no período da
quadra junina: os Arrastões do Pavulagem. Esses cortejos têm uma linguagem em
interação com elementos da cultura popular, como a inspiração oriunda dos
grupos de boi-bumbá de Belém e do interior do Pará, a presença de São João como
padroeiro do festejo, integrando ainda ícones como estandartes e os mastros
(paus) juninos, entre outras releituras de brincadeiras de rua de vários cantos
do Brasil.
Foto 1- Arrastão do Pavulagem: Cortejo
inspirado em grupos de boi-bumbá e em outras brincadeiras de rua
Crédito: Dah Passos/Instituto Arraial
do Pavulagem
Os arrastões chamam atenção para a ocupação das brincadeiras
de rua na paisagem da cidade. No caso específico do Pavulagem, seus cortejos
ocupam uma área privilegiada de Belém: o Centro Histórico. Trata-se de um
território que comunica um conjunto arquitetônico, paisagístico e cultural
tombado pelas políticas patrimoniais de salvaguarda da memória da presença
colonial nos prédios, praças e logradouros construídos para fazer de Belém uma extensão
da Europa nos trópicos. E neste espaço de privilégios e de heranças coloniais,
as práticas culturais de caráter popular promovidas pelo Arraial do Pavulagem
interagem não sem conflitos, tensionamentos e concessões com discursos oficiais
sobre viver e estar no espaço público, porque quem faz a brincadeira são
sujeitos e sujeitas que usam seus corpos para produzir sentidos na festa e na
cidade.
A complexidade também se acentua na nomenclatura Arraial do
Pavulagem. Ela funciona como expressão “guarda-chuva” para nomear distintas
práticas e atividades do grupo. O Arraial é um grupo cultural, responsável por
realizar cortejos de rua em Belém do Pará: os chamados Arrastão do Pavulagem
(junho/julho) e Arrastão do Círio (outubro); e Cordão do Galo (janeiro) no
município de Cachoeira do Arari (Ilha do Marajó). Sendo também o criador da
organização não-governamental Instituto Arraial do Pavulagem, onde ocorrem
ações educativas como seminários e oficinas preparatórias para os arrastões. É
ainda a banda musical, cujos integrantes-fundadores Junior Soares e Ronaldo
Silva estão até hoje e funcionam como guardiões e organizadores das principais
atividades inerentes ao instituto, arrastão, banda.
Nem sempre essas fronteiras são tão bem delimitadas,
diluindo-se muitas vezes no percurso das práticas, transmutando-se em diversos
momentos das performances de seus integrantes. Para a pesquisa, meu foco está nas
ações da banda/instituto ligadas ao Arrastão do Pavulagem, o cortejo mais antigo, que reúne
diferentes linguagens para significar a quadra junina.
Por que gênero? Por que pensar em sujeitas
na cultura popular?
Aspectos
relacionados às questões de gênero são movimentos recentes na literatura
acadêmica sobre cultura popular no contexto brasileiro. Em um levantamento bibliográfico
realizado pela pesquisadora Jorgete Lago (2017), ela observou que a produção
científica articulando classe, gênero e raça, em especial se o foco trabalhado
for a perspectiva da mulher, demonstra a reiteração de um processo de
apagamento dos papéis desempenhados por sujeitas nas manifestações de cultura
popular. Seu trabalho, no campo da Antropologia, aborda o protagonismo e
liderança de mulheres em grupos de boi-bumbá, cordões de bicho e pássaro em
Belém.
Já
a pesquisadora Ester Corrêa (2017) realizou em sua dissertação de mestrado um
movimento de questionar esses padrões. Nas trilhas antropológicas, ela
focalizou como são as relações das
mulheres na Marujada de São Benedito, questionando hierarquias e as
transformações que o papel exercido por elas sofreu no interior da festa. As
pesquisadoras Mariana Ferreira (2018); e Tamar Vasconcelos (2016), na História
e Antropologia respectivamente, visibilizam os bastidores dos maracatus de
Pernambuco para dar lugar ao sujeito feminino das práticas sociais naquelas
manifestações culturais. Patrícia Geórgia Barreto de Lima (2013), por sua vez,
investiga as relações de poder e controle sobre a sexualidade e o corpo das
mulheres na cultura popular do Maranhão, também sob o enquadramento dos estudos
antropológicos.
No
que se refere ao Arraial do Pavulagem, ele tem sido um objeto de significativa
investigação em diversas áreas, como na Antropologia e na História, mas os
estudos sobre as relações de gênero ainda são incipientes. E, para pensar suas
dimensões, os caminhos teórico-metodológicos da minha pesquisa são atravessados
por uma abordagem interdisciplinar de produção de conhecimento, em um movimento
fraturado do saber construído na fronteira entre o uso das epistemes
hegemônicas, suas contribuições e seus limites, e a utilização dos
conhecimentos subalternos, produzidos na América Latina e, em especial, na
Amazônia, observando também seus limites. Um movimento que Walter Mignolo
(2003) entende em uma dupla direção, no limiar das fronteiras, que provoca
tensões e fissuras e é denominado como pensamento liminar. Nesse percurso, busco os recursos das teorias
da cultura (estudos decoloniais, etnografia, pesquisa bibliográfica, observação
participante), história oral, geografia, sociologia, da análise do discurso
(filiada à teoria foucaultiana) para a construção de narrativas que confrontem
hegemonias e os muros teóricos das disciplinas.
Nessa linha de
raciocínio, a categoria gênero é um conceito em disputa e nos convida a
interrogar, a partir de uma perspectiva decolonial, os enfrentamentos
discursivos e epistêmicos também em torno deste termo. Ao usar “gênero” como
categoria no lugar de “sexo”, além da superação do discurso biológico para construir
o sujeito feminino, respondo ao chamado de pesquisadoras como Camille de
Magalhães Gomes de desestabilizar a racionalidade moderna e sua colonialidade,
responsáveis por construir um sujeito universal, a mulher sem matizes, nuances
e singularidades.
Meu exercício como pesquisadora da e na Amazônia,
mulher branca num locus privilegiado de enunciação e poder como o espaço
acadêmico, é um movimento em direção ao gênero pelo olhar da decoloniliadade,
em uma tentativa de racializar a discussão, a pesquisa, os dados, a análise,
amplificando as noções
de gênero e de poder. Nesse caminho, tenho como norte o pensamento da
pesquisadora argentina María Lugones (2014), para quem não é possível pensar a
colonialidade, como herança da modernidade e do colonialismo, sem considerar
suas implicações de gênero.
Em
seus atravessamentos, a colonialidade de gênero categoriza os corpos entre
humanos e não humanos, entre quem é objeto e sujeito, nos fazendo atentar para
o “processo de redução ativa das pessoas, a desumanização que as torna aptas
para a classificação, o processo de sujeitificação e a investida de tornar o/a
colonizado/a menos que seres humanos” (LUGONES, 2014, p.939).
Neste
aspecto, é preciso fazer ainda um segundo movimento de tradução, articulando em
conjunto à gênero, à raça, à classe: a categoria de etniCidade para apreender
as pluralidades étnicas presentes na trajetória dessas sujeitas no Arraial do
Pavulagem. Quais visibilidades indígenas e de matrizes africanas são visíveis
no imaginário dessas mulheres no interior do movimento cultural? Quais foram
apagadas e silenciadas, e por quê? Como o que está na superfície é mobilizado
nas letras de músicas, nos discursos das sujeitas e sujeitos, nos corpos e nas
fotografias, nas materialidades escolhidas para análises?
As materialidades portadoras de
sentido e o entrelaçamento com análise do discurso
Para
compreender a cena em que o Pavulagem se estabelece é necessário atentar para a
sua complexa trama de sentidos. Chamo cena heterotópica, à luz do conceito de
heterotopia de Michel Foucault (2013) para a constituição das relações de poder
exercidas no Arraial do Pavulagem, porque é desde sua origem um lugar que
congrega todas as representações, contestações, discursos, experiências e
conflitos dos envolvidos nesta prática cultural em especial. Como lugar em que infinitas
significações convivem, este movimento oferece um amplo território a ser investigado, de espaços de
poder e luta onde é possível observar e analisar os conflitos na interação
entre os mais diferentes discursos ali presentes, potencializados no período da
quadra junina, convertendo-se em uma legítima heterotopia dos nossos tempos.
Foto 2 – Participantes do
Arrastão do Pavulagem encenam brincadeira de laçar o boi durante o cortejo
Crédito: Dah Passos/Instituto Arraial
do Pavulagem
Ao eleger entrevistas, letras de música, corpo e fotografias,
parto do princípio que são “materialidades portadoras de sentido”, como define
Ivânia Neves (2020). Essas escolhas também direcionam minha atenção para as
relações de poder presentes nas práticas sociais. Por conta disso, aproprio-me
da teoria da Análise do Discurso de Michel Foucault e dos trabalhos de Maria do
Rosário Gregolin, partindo do princípio foucaultiano de que o poder “está em
toda parte” ((FOUCAULT, 1988, p.102), para direcionar as análises dos
enunciados produzidos nessas práticas. Se está em todo lugar, o poder exercido
é investido também de materialidade, localizável por sua vez na linguagem.
Apoiada em Clifford
Geertz e seus apontamentos sobre a prática etnográfica, pretendo “estabelecer
relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias,
mapear campos, manter um diário para a condução do trabalho de campo” (GEERTZ,
2008, p.4). Assim, utilizarei da antropologia as técnicas e métodos da
etnografia, da pesquisa bibliográfica e a observação participante. Na seleção e
coleta de entrevistas, usarei as orientações da história oral, importante fonte
de saber. O uso da história oral reafirma-se como dispositivo para a análise
discursiva, pois confere materialidade à construção e reconstrução da memória
popular.
Para seleção das entrevistadas, observo como
critérios: o tempo de participação nas atividades do Arraial, buscando o
cruzamento de experiências entre integrantes que estão desde a década de 90 e
as que passaram a fazer parte das atividades já a partir dos anos 2000,
permitindo verificar as transformações ou estabilizações das práticas sociais
no grupo. Soma-se a esse critério, as categorias raça, classe, etniCidade, nas
quais busco ouvir as diferentes vozes das sujeitas. Atento ainda para os
diferentes papéis exercidos pelas mulheres na instituição e nos arrastões. Nas
entrevistas, busco interrogar os deslocamentos e significações de enunciados do
dispositivo de poder presente na cultura popular para a produção de discursos
que essas sujeitas enunciam. Objetivo ainda compreender as identificações
presentes nos discursos sobre gênero entre as participantes do Arraial do
Pavulagem, identificar quem são essas mulheres que estão no Arraial do
Pavulagem e quais os papéis exercem na constituição dos arrastões, analisar
também como essas mulheres percebem seu papel na constituição dos Arrastões do
Pavulagem e, por fim, mapear e analisar as microlutas diárias nas práticas
sociais no Arraial do Pavulagem a respeito do ser mulher neste movimento
cultural.
Na seleção e coleta de letras de música, vou me
debruçar sobre a discografia do Arraial do Pavulagem, composta por oito álbuns,
e para as canções presentes no cancioneiro usado na performance de rua dos
arrastões. Sobre essas materialidades, tomo como critério de escolha para
análise em quais lugares estão posicionadas as mulheres nessas composições,
observando como os substantivos, adjetivos e pronomes são mobilizados para
nomear, representar e caracterizar as mulheres neste imaginário e como essas
representações afetam as relações de gênero no movimento cultural.
Com as fotografias, mergulho na visualidade cênica do
Pavulagem para verificar e interpretar os usos e contra-usos da imagem das
mulheres nos discursos institucionais do grupo. Selecionando para isso o
material publicado nos álbuns do perfil oficial do grupo no Facebook,
relacionados aos cortejos juninos. O Facebook é o maior canal do grupo em
número de seguidores e interações.
Por fim, o corpo como enunciado produz diversos
sentidos, potencializados nas performances na rua. Meu interesse nessa
materialidade se dá pelos jogos de poder e controle que se estabelecem nas
práticas sociais do grupo, observando como as mulheres usam essa mídia para
comunicar. Para isso, centralizo minha atenção para os figurinos e suas
estilizações para a performance na rua, para o gestual empregado nos movimentos
de dança e para o posicionamento e distribuição dos corpos e papéis no interior
da comunidade de brincantes durante as apresentações na rua.
Defendo que essa pesquisa reivindica novos olhares
para os estudos sobre linguagem, reafirmando a urgência de tratarmos com
seriedade o gênero como categoria de análise nas práticas discursivas dos
sujeitos e sujeitas nas diversas esferas da vida social. O gênero está
investido de luta, poder, controle. E olhar o gênero como prática discursiva,
nos leva a observar o que Denise Witzel (2011) chama atenção: a circulação do
poder em todos os “domínios da vida humana” como microlutas diárias circunscrevendo
as instituições e as relações cotidianas, nos fazendo interrogar quais motivos
levam determinados enunciados a serem autorizados e outros silenciados nas
práticas sociais.
Referências
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GOMES, Camilla de Magalhães. Gênero como categoria de análise decolonial. Civitas, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 65-82, jan.-abr. 2018.
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Sobre a autora
Jornalista
e produtora cultural. Licenciada em Letras-Língua Portuguesa pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA). Mestranda em Estudos Linguísticos
pela UFPA/Bolsista Capes. Pesquisa relações de gênero, discurso e cultura
popular. Tem interesse nas áreas de Análise do Discurso, Linguística Aplicada,
Teoria dos Gêneros Textuais e Letramento. Como jornalista atuou como repórter e
editora no jornal Diário do Pará, em Belém; coordenou por sete anos a
comunicação do grupo cultural Arraial do Pavulagem. Colabora como produtora do
Projeto Circular Campina-Cidade Velha, iniciativa da sociedade civil para
revalorização dos bairros do Centro Histórico da capital paraense. Em 2018, o
Circular foi reconhecido nacionalmente com o prêmio Rodrigo Melo Franco de
Andrade, do IPHAN, como uma das melhores ações de valorização do patrimônio
cultural brasileiro. Currículo Lattes.
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