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O Areal: imaginário e ocupação simbólica na Amazônia



O Areal (2008), uma coprodução chileno-brasileira dirigida por Sebastián Sepúlveda, considerado o melhor documentário da IV Mostra Amazônica de Manaus em 2009, apresenta ao público a relação dos descendentes da comunidade quilombola Guajará com os espíritos que habitam um areal encantado.

Estes detalhes anunciam a atenção conferida às negociações culturais entre o povo Guajará e a construção de uma moderna ponte (Alça Viária do Pará) que ameaça mudar o estilo de vida da região[1].

 Neste documentário, a maneira como o telespectador caminha tranquilamente pela leitura das cenas impressiona. Tranquilamente aqui não é anunciado como um termo equivalente a uma “leitura fácil” (se é que isso seja possível), mas com o efeito de sentido ratificador de testemunhos que apontam, por exemplo, para o poder da palavra em muitas sociedades tradicionais, o tempo da floresta versus o tempo da cidade, a importância e o respeito cerimonioso com o ambiente noturno e suas entidades encantadas (visagens). Acontecimentos fundamentais para compreendermos, a partir do filme, que os interesses de gestão da comunidade são agenciados para uma outa maneira de habitar o areal e negociados em uma ocasião muito clara de transição histórica impulsionada pelo dispositivo colonial e suas atualizações.

A partir das brechas discursivas deixadas por Sebastián Sepúlveda, nota-se em relação aos processos envolvendo a modernização desta comunidade remanescente de quilombola, práticas coloniais sistematizadoras de uma nova cosmologia em função dos discursos “verdadeiros” de progresso, favorecendo a invenção de outras tradições para os sujeitos habitantes do areal encantado. Estas práticas, com novas modernizações, chegam, inclusive, até os nossos dias.

Logo, seja através de antagonismos ou momentos de angústia vividos pelos quilombolas à época desta política estruturante de Estado na Amazônia, a representação do progresso não deve ser lida apressadamente pelo telespectador. Até porque ao reencenar um passado de luta, a própria “dona do areal” (idosa que exerce grande influência na comunidade), de forma bastante peculiar, diz que não se pode confundir tradição e modernidade, público e privado e etc. Depoimento, que corroborado pela encantaria trabalhada pela forma de falar das comunidades tradicionais, encaminha o público ao questionamento de como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso do chamado Estado moderno.

Trata-se de um documentário que evidencia, acima de tudo, com base em Ana Pizarro (2012)*, a recente urbanização e a ocupação humana, no espaço amazônico, nitidamente vinculadas ao processo de ampliação e aperfeiçoamento da forma capitalista de produção que se intensificou na região a partir da década de 60 com a instalação de projetos econômicos configuradores da nova forma de “aproveitamento” do espaço econômico da Amazônia brasileira.

Portanto, para quem gosta de debates que oportunizam a mobilidade do lugar das perguntas, para que seja também possível instigar outros lugares de resposta, este audiovisual é um verdadeiro painel simbólico sobre os modos de viver (ou de morrer) decorrentes da expansão capitalista na Amazônia brasileira.
Welton Diego Carmim Lavareda (PPGL-UFPA/GEDAI) Doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Pará 


OBRA

O AREAL. Direção: Sebastián Sepúlveda. Special Jury Prize. Chile e Brasil., 2008. 54 minutos. Formato: Ntsc. Stereo.
Para assistir ao filme, clique aqui 



NOTA

* Ana Pizarro é chilena, professora e pesquisadora do Centro de Estudos Avançados da Universidade de Santiago do Chile e Doutora em Letras pela Universidade de Paris. Intelectual especializada em temas relacionados com as literaturas, culturas e sobre as ocupações simbólicas na América Latina, desde a época de seu descobrimento até o período contemporâneo. Já colaborou em centros de estudos e Universidades no Chile, França, Argentina, Venezuela e Brasil. Um de seus projetos de pesquisa mais significativos, intitulado “Perfil cultural da área amazônica”, foi agraciado com a Bolsa Guggenheim, em 2002. Organizou as seguintes obras: La literatura latino-americana como processo (1985), Hacia uma historia de la literatura latino-americana (1987), El archipiélago de fronteras externas, entre outras. Seu trabalho mais conhecido no Brasil é a trilogia América Latina: palavra, literatura e cultura (1993-1995). Também foram editados no Brasil, pela EdUFF, em 2006, a coleção de ensaios O Sul e os trópicos e, pela UFMG, em 2012, Amazônia – as vozes do rio. Em capítulo recente no cenário político da América Latina, Pizarro foi convidada para almoçar com o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, membros do governo chileno e diplomatas. Entretanto, negou-se a ir ao encontro através da carta aberta publicada no blog.








[1] A rodovia PA- 483, oficialmente inaugurada em 2002 como Alça Viária do Pará, é um complexo de pontes e estradas que totalizam mais de 74 km de rodovias e 4,5 km de pontes, construídas para integrar a Região Metropolitana de Belém ao interior do estado do Pará.

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