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Do governo da língua: entre imposições do dispositivo colonial e a resistência das línguas indígenas na Universidade Federal do Oeste do Pará


Marília Fernanda Pereira Leite
Orientadora: Dra. Ivânia dos Santos Neves
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará



VÍDEO DE APRESENTAÇÃO

A cidade de Santarém está localizada no oeste do estado do Pará e completou 359 anos na data de 22 e junho de 2020. A igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição é o prédio mais antigo da cidade e estampa ao lado da porta principal, na placa histórica de construção da igreja, um registro do violento processo de colonização sofrido pelos povos indígenas da região, a igreja foi construída sobre solo sagrado indígena, em um cemitério do povo Tupaiu, conforme podemos observar nas imagens abaixo.

Figura 01: Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição 

Foto: Sidney Oliveira/Agência Pará


Figura 02: Placa histórica da construção
 Foto: Valéria Fonseca

Os povos indígenas que vivem na terra que hoje está localizada a cidade de Santarém estão resistindo à violência colonial por mais de 359 anos. Esta compreensão é fundamental para refletir sobre o processo de construção da primeira universidade federal no interior da Amazônia, a Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA, e o desenvolvimento das políticas de ações afirmativas dessa universidade voltadas para o ingresso e permanência dos estudantes indígenas.


A Ufopa foi criada pela Lei nº12.085 de 5 de novembro de 2009, é a primeira instituição federal de ensino superior com sede no interior da Amazônia, no município de Santarém, a terceira maior cidade paraense, com campis nos municípios de Alenquer, Itaituba, Juruti, Monte Alegre, Óbidos e Oriximiná.

A criação de uma universidade no interior da Amazônia foi uma vitória na luta por democratização do ensino superior. O corpo discente da Ufopa é formado majoritariamente por indígenas, quilombolas, ribeirinhos e filhos dos trabalhadores da cidade, do campo, das águas e das florestas da região oeste do estado do Pará.

A Ufopa realiza desde 2010 o Processo Seletivo Especial Indígena – PSEI, um processo seletivo diferenciado para candidatos indígenas às vagas em todos os cursos de graduação ofertados pela instituição. Segundo dados da Pró-reitoria de Gestão estudantil – Proges, o número de indígenas que ingressaram via PSEI na Ufopa é de 529 discentes (dados retirados do Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas – SIGAA em 02/06/2020) oriundos dos seguintes povos: Borari, Borari Arapiun, Borari Tapuia, Munduruku Cara Preta, Jaraqui, Juruna, Kaxuyana, Kumaruara, Maytapu, Munduruku - Alto Tapajós, Munduruku - Médio Tapajós, Munduruku - Baixo Tapajós, Sateré-Mawé, Tapajó, Tapuia, Tupaiú, Tupinambá e Wai-Wai.

Apesar de toda a diversidade de povos e línguas indígenas, a Ufopa ainda não possui políticas pedagógicas diferenciadas efetivas para os estudantes indígenas. A ausência de tais políticas não estaria contribuindo para que uma universidade federal no interior da Amazônia seja mais um instrumento do dispositivo colonial (NEVES, 2009, 2015, 2020) utilizado para dominação dos povos indígenas? Como o dispositivo colonial age no processo de ensino e aprendizagem ao ignorar as línguas indígenas?

Os questionamentos acima nasceram no decorrer da minha prática docente na universidade. Entrei no corpo docente da Ufopa em março de 2017 com a missão de implementar com um grupo de professoras um projeto da instituição que é fruto de oficinas realizadas em 2016 com o movimento indígena e estudantes indígenas da universidade. O projeto é denominado de Formação básica Indígena, é uma formação acadêmica inicial específica e diferenciada ofertada para os calouros indígenas que entram na Ufopa Via PSEI, vale ressaltar que na Ufopa ainda não há cursos de graduação específicos para o público indígena.

A Formação Básica Indígena é um instrumento da Política de ações afirmativas da Ufopa regulamentada pela Resolução nº 194, de 24 de abril de 2017. Trata-se de uma formação acadêmica inicial ofertada em dois semestres apenas para os estudantes indígenas. Antes de começarem os estudos nos seus cursos de graduação, o estudante indígena passa por essa formação inicial específica com atividades que envolvem o ensino, a pesquisa e a extensão: cursam disciplinas específicas, elaboram projetos para serem desenvolvidos nas aldeias, participam de oficinas, minicursos e curso de tecnologias. Entre os objetivos dessa formação está a proposta de trabalhar as dimensões étnico-racial, política, pedagógica e epistemológica em busca da efetivação de um diálogo interepistêmico e intercultural.

Em julho de 2017 aconteceu o I Encontro da Juventude Indígena do Baixo Tapajós. O encontro foi realizado no Território Indígena Cobra Grande, Aldeia Lago da Praia. Alguns estudantes indígenas que estavam na Formação básica indígena daquele ano também faziam parte da coordenação do evento e me convidaram para participar do encontro. Foi durante a programação do evento que eu tive oportunidade de ouvir falar pela primeira vez da Semana de Vivência de Língua Nheengatu e notório saber que ocorre na Terra Indígena Maró e é realizada desde 2015 na primeira semana do mês de setembro.

As informações e reflexões sobre a semana de vivência que trago nesse texto foram construídas com base na fala do cacique Odair José Alves de Sousa, no encontro de jovens e da pesquisa realizada pelos estudantes indígenas da Ufopa Jocinaldo Arapiun e Ronaldo Borari, desenvolvida dentro da disciplina ofertada pela Formação Básica Indígena denominada Direitos Humanos e Direitos Indígenas. Os trabalhos de pesquisa realizados durante a disciplina foram socializados no evento que denominamos de II Exposição Situacional das Políticas Territoriais e Linguísticas dos Povos Indígenas da Área de Abrangência da Ufopa[1]. A pesquisa realizada por cerca de 62 estudantes das turmas da Formação Básica Indígena Manhã e Tarde do ano de 2018 teve como principal objetivo fazer um mapeamento das situações das línguas e do território desses estudantes, para problematizarmos com base nos conteúdos estudados na disciplina os desafios da garantia dos direitos linguísticos e territoriais de cada povo.

A TI Maró pertence aos povos Arapiun e Borari e contém três aldeias: aldeia Novo Lugar (composta por cerca de 21 famílias Borari), Cachoeira do Maró (17 famílias do povo Arapiun) e São José III (9 famílias do povo Arapiun). Essas aldeias localizam-se à margem direita do Rio Maró, no município de Santarém/PA e abrange uma área de 42.373 hectares (FUNAI, 2011).
Figura 04 Localização TI Maró

A Semana da Vivência é organizada pelas lideranças da TI Maró, cacique, pajé e professores da escola indígena com o apoio da FUNAI e outras organizações e visa o fortalecimento da identidade indígena e a valorização dos saberes tradicionais. A semana nasce como uma proposta anticolonial: ao invés de fazer uma Semana da Pátria na semana do dia 7 de setembro, data da independência do Brasil, os indígenas da TI Maró fazem uma Semana de Formação, com relato de experiências, estudo da língua Nhengatu, construção de estratégias para uma pedagogia Borari e Arapiun para a escola, oficinas de remédios naturais, momentos de fortalecimento espiritual com o pajé, oficinas de monitoramento por drone do território, dentre outras atividades que os povos julguem interessante para o momento.  

Figura 05 Semana de Vivência TI Maró

A Semana de Vivência ocorre no Centro de Apoio Maró, trata-se de uma casa grande de madeira construída como sede da fazenda Curitiba, localizada a cerca de 14 km da aldeia Novo Lugar, a casa era uma base e apoio de invasores para a extração de madeira dentro da TI Maró. Em 2013, os indígenas se organizaram, expulsaram os invasores e ocuparam a casa, transformando-a em um espaço oposto ao que antes era destinado. É importante destacar que foram os próprios indígenas que em 2007 realizaram a autodemarcação da TI Maró e confrontaram os madeireiros, devido à demora e ineficácia do poder público em resolver a questão.

Em decorrência da negação por parte do estado brasileiro dos direitos e da existência dos povos indígenas que até hoje lutam para o reconhecimento de suas terras, os povos Borari e Arapiun decidiram não desfilar/marchar pela pátria que não os reconhece, nem mesmo hastear a bandeira do Brasil no seu território sagrado. Na primeira semana de setembro um cocar é hasteado na abertura da semana de vivência, o som que se ouve é o do ritual do pajé com palavras na língua Nheengatu, e dos demais indígenas pedindo força e proteção para o bom andamento da semana.

No questionário sobre direitos linguísticos (proposto dentro da disciplina de direitos) aplicados pelos estudantes indígenas do povo Borari e Arapiun em suas aldeias, os estudantes apontam a língua indígena Nheengatu como sua língua materna, no entanto, ao serem questionados sobre o conceito de língua materna é unanime o posicionamento de que a língua Nheengatu não está em todas as palavras que eles falam, mas está na espiritualidade que eles vivem. Esse fato nos remete ao significado de língua defendido por Neves (2020), no Grupo de Estudo mediações, discurso e sociedades amazônicas - GEDAI, de que a língua não é só estrutura linguística, a língua também é uma cosmologia.

Os povos da TI Maró ressignificaram instrumentos colonizadores (a casa construída pelos madeireiros e a escola proposta pelo não indígena) em espaços de formação e transformação indígena por meio de uma gnose liminar/pensamento liminar (Mignolo, 2020).  Compreendemos a semana de vivência como um acontecimento segundo Foucault (2010, p. 255-256):

O que me interessa, no problema do discurso, é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento. Não é o sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento. Para mim, trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos - que podemos chamar de acontecimentos discursivos - mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao campo político, ou às instituições. Considerando sob esse ângulo, o discurso não é nada além de um acontecimento como os outros, mesmo se, é claro, os acontecimentos discursivos têm, em relação aos outros acontecimentos, sua função específica. 

A função desse acontecimento perpassa a consciência dos símbolos coloniais e a atitude de buscar estratégias para que esses símbolos sejam ressignificados. Mignolo (2020) denomina de semiose colonial esse movimento de enfrentamento do dispositivo colonial.

Prefiro o termo semiose colonial a transculturação (...). A semiose colonial procurou, embora talvez não com total êxito, banir a noção de “cultura”. Por quê? Porque essa é precisamente uma palavra-chave dos discursos coloniais que classificavam o planeta, especialmente depois da segunda onda de expansão colonial, de acordo com a etnicidade (pele, cor, lugar geográfico) e um sistema de signos (língua, alimentação, vestuário, religião etc.). Do século 18 até aproximadamente 1950, a palavra cultura tornou-se algo entre “natureza” e “civilização”. Ultimamente, a cultura tornou-se a outra extremidade, ou o outro lado, dos interesses financeiros e do capital (MIGNOLO, 2020, p.39).

Entendemos, portanto, a Semana de Vivência da TI Maró como um acontecimento no sentido foucaultiano e a semiose colonial como uma ferramenta que visa

Identificar momentos precisos de tensão no conflito entre duas histórias e saberes locais, uma reagindo no sentido de avançar para um projeto global planejado para se impor, e outros visando às histórias e saberes locais forçados a se acomodar a essas novas realidades. Assim, a semiose colonial exige uma hermenêutica pluritópica pois, no conflito, nas fendas e fissuras onde se origina o conflito, é inaceitável uma descrição unilateral (MIGNOLO, 2020, p.41). 

 “A semiose colonial ‘acontece’ no entrelugar de conflitos de saberes e estruturas de poder” (Mignolo, 2020, p.40), a Semana de Vivência é uma reação da história local dos povos Borari e Arapiun à história global da independência do Brasil e ao projeto colonial de apagamento das práticas culturais das nações indígenas.

A universidade também é esse espaço, esse entrelugar onde os saberes locais reagem aos avanços dos projetos globais. É possível perceber que os povos da TI Maró, bem como os outros povos indígenas com representação na Ufopa compreendem o funcionamento do dispositivo colonial presentes nos aparelhos do Estado, no entanto há uma administração ou governo da língua que propicia que essa compreensão possa ser destruída na universidade. O que fazer para que uma universidade na Amazônia, composta por cerca de 500 estudantes indígenas, não seja mais um instrumento colonizador e sim um espaço de práticas transdisciplinares?

A presença indígena obriga a universidade a se repensar, obriga a universidade a pensar no governo da língua. A relação da universidade com as sociedades indígenas é tão problemática que não há estudos das línguas indígenas faladas pelos estudantes indígenas nas UF’s da Amazônia.

Por que as apresentações de trabalhos de conclusão de curso e pesquisas dos estudantes indígenas em suas línguas maternas ainda são notícias? Mignolo (2020, p.48) define “pensamento liminar como os momentos de fissura no imaginário do sistema  mundial colonial/moderno”, esses momentos de fissura dentro das universidades são raros. Há um governo da língua, uma gestão de conhecimentos que invisibiliza as línguas das sociedades indígenas nas universidades federais da Amazônia.

A Ufopa, bem como todas as universidades públicas da Amazônia, precisam SE alinhar a epistemologias com base na semiose colonial ou continuarão construindo colonialidades sob cemitérios de línguas indígenas amazônicas.


REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
LISBOA, Flávia Marinho. Língua como linha de força do dispositivo colonial: os Gavião entre a aldeia e a universidade. Tese (doutorado) – Programa de pós-graduação em Letras, Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais / Projetos Globais: Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2020.
NEVES, Ivânia. A invenção do índio e as narrativas orais tupi. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
_______. EtniCidades: os 400 anos de Belém e a presença indígena. Revista Moara – estudos linguísticos. Edição 43, jan-jul, 2015. p. 26-44.
_______. Fraturas contemporâneas de histórias indígenas em Belém: sobre mármores e grafites. Revista Maracanan, v. 02, p. 544-566, 2020. 



Marília Leite é professora Assistente no Instituto de Ciências da Educação - ICED da Universidade 
Federal do Oeste do Pará - Ufopa onde atua no desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão dentro do projeto institucional denominado Formação básica indígena, voltado especificamente para o acompanhamento acadêmico dos discentes indígenas que ingressam na Ufopa via Processo Seletivo Especial Indígena- PSEI. Doutoranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará - UFPA e Mestra em Letras: Ensino de Língua e Literatura pela Universidade Federal do Tocantins - UFT. Integra o Grupo de Estudo Mediações, Discurso e Sociedades Amazônicas (GEDAI/UFPA). Currículo Lattes. 




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