Daniel
Loureiro Gomes
Orientadora: Dra. Ivânia dos Santos Neves
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará
VÍDEO DE APRESENTAÇÃO
A proposta desta tese, em fase inicial, busca
analisar a construção do corpo da periferia de Belém em diferentes mídias. Sob
a perspectiva foucaultiana, o corpo torna-se central nas investigações sobre a
construção das subjetividades, em diferentes tempos, espaços e discursos. Além
disso, ao considerar diferentes espaços midiáticos em que o aparecimento do
corpo periférico aparece, objetivo encontrar as regulares e dispersões que
assinalam o lugar histórico ocupado por esses corpos na periferia e na mídia.
Para isso, três diferentes plataformas midiáticas
foram selecionadas, nas quais as construções dos corpos delineiam diferentes
regimes de verdade sobre suas histórias, sobre pluralidade étnica e sobre as
formas de dizer sobre Belém e sua periferia. Dessa forma, esta tese se alinha
ao projeto de pesquisa intitulado Etnicidades Amazônicas: fraturas, invenções e
interações, do Grupo de Estudo Mediações, Discurso e Sociedades Amazônicas, sob
coordenação da prof.ª Dr.ª Ivânia dos Santos Neves.
Como objeto central de minhas investigações, pensar
o corpo ao longo da história é uma tarefa complexa, pois o lugar que ele ocupa
atualmente no campo das ciências sociais foi definido recentemente, por
diferentes lentes, sob diferentes perspectivas, na virada do século XX. Da
psicanálise à antropologia, o corpo estava relacionado a algo, seja ao
inconsciente ou às práticas humanas, minimizando seu potencial teórico como
objeto central de investigações. No campo das ciências da linguagem, tal tarefa
parecia ainda mais difícil, uma vez que o constante debruçar sobre a língua,
seja na perspectiva descritiva ou normativa, traduzia o obstáculo que era
pensar o corpo como lugar de construção de sentidos.
No entanto, foi com as reflexões filosóficas de
Foucault acerca das relações de poder institucionalizadas sobre o corpo que
ocorre a mudança desse olhar, esse corpo passa ser um espaço de investimento de
forças sociais, históricas, de poder. Ou seja, Foucault desloca o corpo para um
estatuto de escrita da história e inscrição na história, pois ele a conta e
nela atua. Uma atuação encadeada, conectiva, articulada a outros corpos que
tecem o fio descontínuo da história. “O corpo singular se torna um elemento,
que se pode colocar, mover, articular com outros. Sua coragem ou força não são
mais as variáveis que cobre, a regularidade, a boa ordem segundo as quais opera
seus deslocamentos.” (FOUCAULT, 2014, p. 161).
Ao assumir o corpo como centro de relações que envolvem
o sujeito, o discurso e as instituições, bem como na construção narrativa da
sociedade a partir do local que ocupa (MILANEZ, 2007), entende-se que nele estão
presentes relações históricas que o transformam em um verdadeiro monumento.
Como monumento, entendo que o corpo não é apenas um documento onde se registram
os movimentos fluidos da história, pois ele é constituinte das tensões de
vários discursos que permitem aos sujeitos tecerem suas relações sociais. E, ao
percebê-lo construído dessa forma, busco analisá-lo como parte de um conjunto
de práticas contemporâneas que servem a um arquivo (FOUCAULT, 2012) de dizeres
que integram língua, corpo, imagem, memória e demais enunciados.
Por essa razão, pensar o corpo dentro de uma
história do presente é analisar como sua construção se dá em diferentes
materialidades, que demonstram essa pluralidade de enunciações em diferentes
momentos históricos e em diferentes mídias e novas tecnologias. Para o
desenvolvimento desta tese, foram eleitas três categorias: produções em audiovisual de clipes musicais paraenses, memes
das páginas Malaco de Bem e Malaco intelectual e capas de seções policiais de
um jornal impresso paraense.
Pensando a convergência das mídias (JENKINS, 2009), o objetivo é analisar a
construção dos corpos na história da periferia de Belém em diferentes mídias,
uma construção atravessada por uma série de enunciados verbais e visuais que
demonstram a segregação entre centro e periferia, uma divisão social, cultural
e histórica da cidade de Belém, desde seu processo de invasão portuguesa e
marginalização dos povos indígenas e africanos a partir do período colonial.
A análise se baseará em comparações
enunciativo-visuais das materialidades a fim de observar as construções dos
corpos da periferia. Os enunciados, os resgates históricos, a referência a
figuras e temas serão importantes para construir essa leitura histórica que
coloca a periferia como como espaço de ressignificação de corpos pertencentes a
um lugar histórico muito específico, ao colonialismo interno (GONZÁLES CASANOVA, 2009) que coopera
para construção desses corpos na mídia, em um jogo de relações de poder que
permanecem no presente, demonstrando seu contínuo fluxo de poder dentro dos
rastros coloniais iniciados no século XVI.
A capa do caderno (imagem 1) voltado para noticiar
a criminalidade no estado do Pará demonstra esse caráter histórico de
marginalização. O subtítulo da capa indica o bairro do Tapanã como lugar dos
assassinatos, bairro da periferia, ocupado pelos corpos negros agora sem vida.
Vitimados pela violência urbana e histórica, a segregação social estampa as
capas dos jornais, desenhando a separação entre centro e periferia. A mídia
jornalística impulsiona o discurso que entremeia violência, marginalidade e
corpos negros. Vítima ou criminoso, esse corpo ocupa o espaço dedicado à
violência, ao tangenciamento com o ilegal, uma judicialização midiática que
reitera a memória coletiva (HALBWACHS, 1990) do preconceito.
Imagem 2
Videoclipe da
música “Galera da laje”, da Gang do eletro. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=AYNUUlw6ldk
No entanto, a arte, como forma de resistência ao
discurso marginalizador, midiatiza esses corpos. No videoclipe da música “Galera da laje” (imagem 2), os corpos se alinham a uma
ressignificação de existência coletiva, ocupam alegres, dinâmicos, construções
da periferia. A casa com seus tijolos expostos legitima essa periferia, um
segundo plano que potencializa a geografia desse corpo, cujo sujeito é situado
arquitetonicamente na resistência à própria história.
Como o sujeito é
calculado e esquadrinhado pela câmera é a arquitetura discursiva de um processo
para um segundo momento, dada pela espessura do próprio sistema de
audiovisualidades, o enredamento de uma espessura de regularidades e
contradições que as táticas cinematográficas põem em jogo para a construção
desse sujeito das audiovisualidades, tão nós mesmos em sua ficção e sua utopia
corporal. (MILANEZ, 2019, p. 46)
Na captura dessa imagem, os corpos encenam a dança
que legitima suas subjetividades. Culturalmente, o tecnobrega é um ritmo da
periferia, emergente de um movimento que gera visualidades específicas, na cor
da pele, nas roupas e nos adereços. A composição dos corpos é a tessitura dessa
arte da periferia, um deslocamento desse corpo que, na capa de jornal, é
violência. No clipe, é arte de resistência.
Imagem 3
Meme
da página “Malaco Intelectual”, publicado em 18 de fevereiro de 2020.
Disponível em: https://www.facebook.com/malacointelectual/photos/a.143412345820152/1476283785866328/?type=3&theater
O meme acima (imagem 3), extraído da página Malaco
Intelectual, cria um jogo cronológico a partir da comparação entre dois
diferentes anos, 2020 e 2080. A referência a esses anos é complementada pelos elementos verbal,
indicador de tempos aos quais os netos conheceriam
seus avôs por fotos. Em 2020, o neto veria o homem negro retratado como antigas
reproduções fotográficas, como um desenho tradicional antigo que compunham a
memória das famílias. Uma tradição que seria quebrada pela fotografia vista
pelo neto em 2080, uma vez que esse avô seria apresentado como um garoto de
boné, óculos escuro e
um gestual adolescente.
Efeitos de humor construídos, a regularidade dos
corpos está marcada na cor de sua pele. Os quarenta anos de diferença instituem
a intermitência do discurso do corpo negro da periferia, o Malaco identificado
na página e que, embora com quarenta anos de diferença, ainda está relacionado
a esse sujeito típico da periferia e marginalizado pelo discurso midiático e
judicial.
Em geral, ele é visto como alguém que tem
um estilo de vida próprio, um jovem da periferia que busca legitimar uma
identidade que se distancie daquela produzida pelo jovem morador do centro, o “playboy”. Suas roupas, cabelo, gosto musical,
festas produzem uma subjetividade muito particular [...] pois, uma vez
pertencente à periferia, a relação com o centro o coloca como a figura
marginalizada e que comete crimes, o que nem sempre é verdadeiro, mas que
clarifica um jogo de poder pelos sujeitos do centro sobre os da periferia.
(GOMES, 2018, p. 71)
A partir do dispositivo colonial (NEVES, 2015),
esses dois espaços da cidade (centro e periferia), ao serem visualizados nessas
mídias, ganham formas muito específicas ao serem enunciados em cada uma. Assim,
a sequência das análises do trabalho contemplará as condições históricas em que
esses discursos estão inscritos, a partir de uma arqueologia, de uma restituição
histórico-discursiva daquilo que constitui a imagem da periferia de Belém e de
seus sujeitos.
Como na breve análise apresentada, o fio comum,
étnico e histórico dos corpos, é componente indispensável para
uma construção social dos
sentidos que se inscrevem nesses sujeitos. O corpo colonizado, periférico,
ocupa diferentes mídias e assim, traz consigo a carga histórica da exploração
iniciada pela colonização. Seja na capa da seção policial do jornal, no
videoclipe de um grupo de tecnobrega ou em um meme, a periferia se faz presente
nos corpos apresentados. Sob diferentes ângulos, focos, posições, leituras
sociais, esses sujeitos emergem como constituintes de uma narrativa plural,
segregatória e que, por vias legais, artísticas, de humor reafirmam o lugar
periférico que eles ocupam.
Referências
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012.
_________________. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão; tradução de Raquel Ramalhete.
42. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.
GOMES, Daniel Loureiro. Quem somos nós hoje? Memes, subjetividades e malacos no Facebook.
Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade Federal do Pará, 2018.
GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo; ROITMAN, Marcos. De la sociologia del poder a la sociologia
de la explotacion: pensar America Latina en el siglo XXI. e-libro, Corp.,
2009.
HALBWACHS, M. A Memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo,
Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. Tradução de: La mémoire collective.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
Milanez, Nilton. As aventuras do corpo: dos modos de subjetivação às memórias de si em
revista impressa. Tese de Doutorado em Linguística. Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2007.
_______________. Audiovisualidades: elaborar com Foucault. Londrina: EDUEL, 2019.
NEVES, Ivânia dos Santos. EtniCidades: os 400 anos de Belém e a presença
indígena. MOARA. ISSN: 0104-0944, [S.l.], n. 43, p. 26-44, 2015. ISSN
0104-0944. Disponível em:
<http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/moara/article/view/2634/2776>.
Daniel Loureiro Gomes é doutorando em Letras - Estudos Linguísticos, com ênfase em Análise do Discurso, pela Universidade Federal do Pará e pesquisa o corpo como construção discursivo-midiática. É professor de Língua Portuguesa da Secretaria de Estado da Educação (SEDUC-Pa) e do Centro Universitário FIBRA. Currículo Lattes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário