Gedai Cast 3: materialidades discursivas e as subjetividades
Por Yorranna Oliveira
Quem somos nós hoje? A pergunta
tem norteado os debates e os percursos teórico-analíticos da programação do VII
Seminário de Pesquisa do Gedai/Geada/Leduni. Chegamos à segunda semana de
diálogos, análises e reflexões, pensando a partir das reverberações dos textos
de Michel Foucault. Na segunda live do seminário, o tema “Materialidades
discursivas e subjetividades” traz como debate a construção das verdades e das subjetividades
nas sociedades em determinado momento histórico, onde o discurso exerce papel
central ao produzir quem somos a partir das diferentes formas de linguagem que
circulam na nossa vida cotidiana. “Por isso, essa natureza fundante do discurso
faz com que aquilo que somos seja aquilo que os discursos disseram sobre nós e
sobre as nossas subjetividades”, explicou a doutora em Linguística e Língua Portuguesa
(Unesp), livre-docente em Análise do Discurso e mediadora da live, a professora Maria do Rosário Gregolin (Unesp).
Em seu texto de abertura do
debate, Gregolin apresenta conceitos-chave da analítica foucaultiana, abordando
noções como discurso, enunciado e subjetividade. Ao questionar o público sobre
o que seria discurso, ela mobiliza três características essenciais atribuídas
por Foucault. A primeira delas é o entrelaçamento da natureza discursiva com o
poder e com o saber, configurando uma luta, uma batalha. “Ninguém diz nada por
dizer, ninguém é livre para falar o que quiser. É sempre inevitável entrar na
ordem do discurso, porque falar é perigoso, é arriscado. Portanto, há um
paradoxo fundamental: ao mesmo tempo em que é constrangido em entrar na ordem
do discurso, o sujeito encontra pontos de fugas, fissuras por onde pode
escapar, mesmo que fugazmente e resistir”, afirmou a mediadora.
A segunda característica é a
concepção da prática discursiva como um “ritual do dizer”, produzido por sujeitos
localizados em uma história, em uma determinada sociedade; um sujeito histórico
que fala sobre si e sobre os outros. “E aí a gente vê claramente esse princípio
fundante da Análise do Discurso: a subjetividade é uma construção discursiva”,
pontuou Gregolin. O terceiro ponto de atenção sobre o discurso reside em sua
natureza sempre material, isto é, está presente nas formas da linguagem, no enunciado
como concretização das verdades e das subjetividades. “Essa materialidade, que
é ao mesmo tempo repetível e deslocável, permite aos enunciados a constituição
da memória e da remanência. Por isso que o enunciado circula, serve, se
esquiva, permite ou impede a realização do desejo. É dócil ou rebelde a
interesses, entra na ordem das contestações e das lutas, e se torna tema de
apropriação e de rivalidade”, reforçou Gregolin.
Discursos sobre leitura. Os enunciados sobre o sujeito leitor na mídia brasileira
Pesquisando diferentes
materialidades em uma variedade de fontes, em particular na mídia tradicional, Luzmara Curcino Ferreira (UFscar)
compartilhou alguns resultados de seu mais recente trabalho, a respeito dos
processos de construção da subjetividade leitora de políticos brasileiros. Doutora
em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp, a pesquisadora analisa a
variedade de enunciados que circularam sobre os ex-presidentes Fernando
Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef. Entre as primeiras
constatações: a recorrência em naturalizar o que é dito sobre leitura e uma
impressionante repetição de categorizações dos sujeitos representados, onde
hierarquias se estabelecem.
No material
levantado, principalmente em veículos como Folha de São Paulo, Estadão, O
Globo, Caros Amigos, FHC é apresentado, mesmo em textos não relacionados com a
leitura, como alguém próximo a livros. Imagem construída, portanto, como a de
um leitor ideal. “Aquele que lê jornais diariamente, como aquele que lê bons
livros, como quem lê desde a infância, como quem gosta de ler, como quem fala
com adequação dos livros que leu, o que prova que ele é leitor, como quem tem
biblioteca, como tem orgulho de falar de si como leitor”, avaliou.
Já Lula não recebe a mesma
representação. Luzmara Curcino encontrou, inclusive, dificuldades para
localizar publicações nas quais a imagem do ex-presidente fosse associada à
leitura nos grandes veículos de imprensa. A alternativa foi analisar as
materialidades presentes em blogs pessoais, até mesmo de profissionais
vinculados à mídia tradicional, onde não publicavam seus textos. “Ele é
representado como quem não lê, como quem não gosta de ler. Quando tenta ler não
faz como deveria. E quando ele fala de si como leitor, a representação que vem
é a insinuação de que ele mente ou de que ele se denuncia na sua inapropriação como
leitor, em função das coisas equivocadas que ele diria em relação aos livros”,
explicou.
Dilma, por sua vez, aparece bem
menos nas representações midiáticas. Chamam atenção os qualificadores e
intensificadores mobilizados para descrevê-la como leitora: “aficionada”, “leitora
voraz”, aquela que lê “linha por linha”. O modo como as palavras são empregadas
evidencia a comparação, pós-eleição, entre Dilma e Lula, num eterno retorno ao
presidente. Na comparação entre as gestões, as competências leitoras de Dilma
são usadas para evocar Lula. Como em fragmentos nos quais, ao contrário do
ex-presidente, que se recusa a ler jornais, ou a ler os calhamaços de documentos,
ela lia os jornais e se irritava, ficando “furiosa”, fazia questão de ler cada
documento, “linha por linha”. Seu cuidado com o detalhe é colocado de maneira
negativa, insinuando que sua conduta atrapalha os processos administrativos. “E
o modo como ela lê não a beneficia, o modo como é relacionado é sintoma de um
perfil obsessivo, autoritário, histérica. Mostra que ela é compulsiva, já que é
uma leitora voraz. As representações mostram estigmas de gênero de longa data.
Um viés sexista em diferentes nuances e graus”, concluiu.
Subjetividades indígenas no audiovisual brasileiro. As histórias filmadas
O pesquisador Maurício Neves Corrêa (UFAP)
trouxe para o debate suas reflexões a partir da articulação de seus trabalhos no
audiovisual, das pesquisas em Análise do Discurso e a vivência com povos
indígenas, que se consolidaram em sua tese de doutorado “Heterotopias no país
dos milagres: os corpos indígenas e as histórias não filmadas”. O resultado foi
pensar como o audiovisual brasileiro construiu e colonizou o corpo indígena. Doutor
em Linguística pela Unesp e integrante do Gedai e Geada, Neves Corrêa tem
pesquisado como a história moderna brasileira, enquanto história republicana, é
acompanhada pelo audiovisual, como nos trabalhos da Comissão Rondon, responsáveis
pela emergência do indígena nessas materialidades em pleno século XX.
A partir dessas histórias
filmadas, entendidas como materialidades, como formas de linguagem que produzem
sentido, é possível perceber a construção das subjetividades dos povos
indígenas no Brasil. “Ao longo desse pouco mais de um século a gente vê como o
Estado Brasileiro e o dispositivo de poder inventou três formas especificas de
governo sobre os corpos indígenas, que até hoje continua se digladiando: o
governo da terra, com toda essa luta pela demarcação de terras; o governo do
corpo indígena, com toda essa questão de docilizar o corpo indígena, a
vestimenta, a língua, a cosmologia, a questão das tradições que são afetadas; e
também o governo da alma, muito fortemente a partir da presença das igrejas
cristãs na terras indígenas. Essas máscaras que tentam colocar no indígena brasileiro
a partir dessas produções. Então é uma história que mostra o processo de
colonização, de como o dispositivo colonial
age ainda em relação aos povos indígenas”, analisou Neves Corrêa.
E como um analista do discurso de
linha foucaultiana, o olhar do pesquisador se lança também sobre as fissuras e
pontos de fuga frente à colonialidade - conceito tão caro aos estudos
decoloniais e que mostra como os efeitos de domesticação e hierarquização dos
corpos não acabo com o fim do período colonial. “Esses indícios materiais estão
no audiovisual, de como essa colonização não acaba. Ao mesmo tempo a gente
consegue ver a resistência do indígena e como que gente articula isso pra
colocar o discurso em luta, esse audiovisual como acontecimento”, observou o
pesquisador. As fissuras, os enfrentamentos e lutas diárias mostram que onde há
poder, há resistência. “Essa luta indígena por visibilidade ganha outro patamar,
graças às redes sociais. Mas também traz os excessos, o excesso de
visibilidade, da pauta indígena e o excesso do ódio”, constatou o debatedor.
Entre fraturas e deslocamentos,
Maurício Neves Corrêa transformou sua tese em roteiro do documentário “Oré
Rugûy: Os povos de resistência”, cujo trailer foi exibido em primeira mão
durante a live. Produzido pelo Coletivo Gó, o documentário se apresenta como
uma dessas insurgências no jogo discursivo, como história filmada desses corpos
sob outras perspectivas, numa tentativa de visibilidade de outras formas de
subjetividades em contraposição àquelas cristalizadas pelo processo de
colonização.
Escritas no corpo. Emergências, lutas e a construção do feminino
Instigada pelas provocações de
Foucault sobre os dispositivos de poder que produzem enunciados e formas de
subjetivação, Denise Witzel (Unicentro)
elabora em suas investigações os processos de produção de sentido sobre o corpo
das mulheres, a partir das verdades constituídas sobre quais vidas importam e
quais vidas não têm validade, os sujeitos infames assim denominados por
Foucault. “O norte que tenho adotado é pensar as vontades de verdade sobre a
mulher, sobre outros sujeitos, que são dados como sujeitos infames e o seu
corpo, sobretudo. Agora esses corpos são delineados, construídos historicamente
a partir de uma rede que se forma e que dá essa possibilidade, essa
inteligibilidade na história”, afirmou Witzel.
Doutora em Linguística e Língua
Portuguesa pela Unesp, Denise Witzel reforça que os estudos sobre o corpo unem
discursos, saberes, poderes que vêm da religião, da filosofia, medicina, mídia,
do feminismo, da história da sexualidade e da própria história como um todo. E
é nesse contexto de constituição de verdades a partir de determinadas formações
discursivas, que a pesquisadora se propõe a compreender as mudanças, os jogos
de verdade que presidem e que presidiram os processos de subjetivação do feminino,
analisando o corpo imerso na história. “Olhando para esse corpo que está
reivindicando direitos, uma posição de vida, é que eu trago um pouco de uma
articulação com o Corpo Utópico (de Michel Foucault). Para Foucault, o corpo é
uma topia, um lugar. Mas antes de tudo uma fonte de propagação de utopias”.
Como objeto de análise de suas pesquisas,
Denise Witzel trouxe um dos vídeos que circulam na web das manifestações do grupo Femen. O grupo de ativistas usa o corpo
como discurso para se opor aos símbolos de opressão masculina, mobilizando a
nudez, a escrita nesse corpo, gritos, entre outras estratégias que materializam
enunciados como “patriarcado: vírus”. “Elas utilizam a singularidade, o
acontecimento desse momento da pandemia em que um vírus desconhecido está assombrando
o mundo. Elas se apropriam desse acontecimento e reorganizam uma
discursivização pra colocar numa doença muito mais antiga do que essa provocada
pelo vírus”, mostrou a debatedora.
No vídeo, é possível verificar enunciados
como “Fiquem longe!”, tratados como medida de segurança de um vírus muito mais
mortal: o patriarcado. “O corpo escrito se revela uma arma nas lutas políticas
diante de um poder patriarcal, que vai funcionar em mecanismos plurais de
intervenção e da constituição da subjetividade da mulher num jogo de
coexistência desse vídeo com outras audiovisualidades, que circulam pela mídia
e pela web, nós nos deparamos com enunciados materializados sobre esses corpos
seminus. Mas esses enunciados, porque eles estão escritos e colados nessa pele transformam
esse corpo - que antes eram apenas corpos -, em conflitos vivos, em veículos
simbólicos de informação e denúncia”, defendeu Witzel.
A pesquisadora ponderou ainda que
a escrita na pele não é uma questão nova, sua atualidade reside no fato dessa
tessitura corporal, presente no espaço urbano e fugaz da realidade das
manifestações, passar a circular na heterotopia que é a web, onde diferentes
lugares, diferentes topias se encontram. “São corpos metamorfoseados em
mecanismos de resistência e materializam discursos efêmeros nas manifestações
urbanas. Isso acaba, é rápido, porque a polícia chega muito rapidamente. Mas eles são perenes, eles permanecem na
heterotopia da web. E é nesse ponto que ganha revelo o discurso em sua
realidade material, ou seja, do enunciado na efetividade de sua existência e
duas condições próprias de possibilidade”.
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