A espada, a cruz, o capital e as línguas na Pan-Amazônia: desdobramentos fundamentais
Welton
Diego Carmim Lavareda
Orientadora: Dra. Ivânia dos Santos Neves
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará
VÍDEO DE APRESENTAÇÃO
1. PRIMEIRAS
PALAVRAS
No ano de 2017, quando iniciei o
Doutorado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Pará, à época já como integrante efetivo do
Grupo de Estudo Mediações, Discursos e Sociedades Amazônicas (GEDAI-CNPq) e sob
a orientação da Profa. Dra. Ivânia dos Santos Neves, a intenção era desenvolver
uma pesquisa que procurasse ler Michel Foucault pelo viés da linguagem, isto é,
“[...] tomando o discurso
como categoria central de seu pensamento pois são as vozes, os próprios
discursos que lhe interessam” (GREGOLIN, 2016, p. 118).
Peculiaridades, sobretudo, conectadas
em um movimento popular iniciado no ano de 1835, em uma clara ambientação de
desavenças políticas características do Período Regencial brasileiro, depois da
abdicação de D. Pedro I, o qual sempre me causou um ‘indispensável demorar-se’
em algumas leituras como estudante desde o ensino básico.
O projeto que venho desenvolvendo no processo de
doutoramento, portanto, tem por objetivo geral analisar como as diferentes
estratégias de governamentalidade estabelecidas pelo dispositivo colonial,
durante o período da Cabanagem, favoreceram a instauração de um patrimônio
linguístico europeu na Amazônia mergulhado em uma série de conflitos, especialmente,
linguísticos[1].
Assim, a partir de séries arquivistas catalogadas no Arquivo Público do Pará, nos Arquivos
Públicos dos Municípios de Cametá-PA e de Vigia de Nazaré-PA, no Foreing Office (de Londres) e na obra “Motins Políticos ou história dos
principais acontecimentos políticos na Província do Pará desde o ano de 1821
até 1835” (1970), a
pesquisa também propõe uma reflexão sobre as táticas de gerenciamento
linguístico como um dos fundamentos para discutirmos as tensões discursivas que
cruzam o governo da língua portuguesa na Província do Grão-Pará completamente
em chamas (1835-1840) [2].
Posto desta forma, nos rastros da
proposta arquegenealógica de Michel Foucault no quadro dos Estudos Discursivos,
não trato os enunciados do corpus da
pesquisa como documentos sacralizados, de sentidos fixos. Isto resultaria em um
olhar para os cabanos como traidores, sujeitos violentos cujo principal
objetivo era desobedecer ao Império brasileiro. Ao contrário, entendo estas
fontes como monumentos, com o objetivo de problematizá-las e pluralizar suas
relações de significação, para posteriormente definir os discursos em suas
especificidades em uma relação íntima com um processo histórico descontínuo e a
língua como uma trama instável de fluxos que só ganha vida quando as pessoas e
suas subjetividades e histórias são consideradas nas práticas sociais múltiplas
e situadas de construção de significado em que atuam.
Para este texto, a fim de estabelecer
um recorte do que já vem sendo desenvolvido na tese de doutorado, analiso de que
maneira a discursivização das línguas na experiência colonial, na América
colonizada por Espanha e Portugal a partir do século XVI, favoreceu a expansão do nheengatu
e da língua portuguesa pelos rios da região amazônica.
Trata-se, por conseguinte, de demonstrar em
que medida a arquegenealogia pode ser compreendida como um trabalho dedicado à
linguagem nessa articulação fundamental com um espaço habitado, alterando
formas ordinárias do tempo, de sua progressão contínua e compondo uma forma de
espacialização linguística com base na interação que ocorre entre os sujeitos,
enraizada nas práticas, em um mundo em que as fraturas, a hibridização, a
mestiçagem, a superdiversidade e a mistura linguístico-identitária são cada vez
mais evidenciadas em uma história do presente.
2
A LÍNGUA COMO MATRIZ DE PODER DO MOVIMENTO COLONIAL
A presença humana no
território do atual Estado do Pará começou há alguns milhares de anos, como
demonstram estudos arqueológicos, principalmente nas margens do Rio Amazonas e
sua foz. No Arquipélago do Marajó, por exemplo, os antigos habitantes conheciam
a arte da cerâmica policromada, entre os séculos V e XIV.
Antes da invasão do
Brasil, o Meridiano de Tordesilhas,
estabelecido, em 1494, entre Portugal e Espanha, atravessava o território do
Pará. Por este documento oficial institui-se que parte do atual Pará seria
portuguesa e outra parte, espanhola. Em 1580, os reinos de Portugal e da
Espanha uniram-se sob a mesma coroa. A União Ibérica, que durou até 1640, por conseguinte,
flexibilizou a divisão de terras da América e o litoral do Pará passou também a
ser explorado por holandeses, ingleses e franceses.
[...] A colonização ibérica,
em grande medida, foi um projeto muito mais agenciado pela Igreja Católica do
que pelas Coroas portuguesa e espanhola. O interesse desses reinos era mais de
ordem comercial e imperial, enquanto a igreja desejava aumentar seu rebanho.
Neste sentido, apoiar a causa ibérica era estratégico para o catolicismo que
naquele momento já sentia os ventos fortes da Reforma protestante. Espanha e
Portugal mantiveram-se fiéis ao Vaticano, que em retribuição dividiu as novas
descobertas ultramarinas entre esses dois reinos, quando estabeleceu o Tratado
de Tordesilhas (NEVES-CORRÊA, 2018, p. 117).
Um núcleo colonial
português se faz amplamente importante em toda esta contextualização,
especialmente, em 1616, com a construção do Forte do Presépio na Baía do
Guajará. Símbolo de dominação edificado após a derrota dos franceses no
Maranhão (meados de 1614) e que incitou nos portugueses um espírito de domínio
militar na região. Nas redondezas do Forte do Presépio cresceu um povoado sob a
invocação de Nossa Senhora de Belém. Como podemos notar na cartografia a
seguir, de João Teixeira Albernaz - um dos cartógrafos oficiais do Período
Colonial que passou em nosso território - Belém já era um espaço habitado em
1640, segundo alguns apontamentos da existência de uma câmara de vereadores em
Belém que datam de 1628. Apesar de ser considerada como cidade, segundo Fabiano
dos Santos (2008), Belém não havia sido fundada formalmente, como mostra o
desembargador João da Cruz Diniz Pinheiro, em carta ao rei de Portugal, em
meados do século XVIII.
[1] Os cabanos
representaram a resistência a uma nova forma de colonização e entraram para a “história
oficial do Brasil” como um governo “rebelde”, de “autoridade marginal”. Em sete
(07) de janeiro de 1835 assumiram o controle da Província do Grão-Pará com o
objetivo de derrubarem as táticas de um governo de exceção e lá se
estabeleceram até 1836, quando as forças legalistas do Império brasileiro,
depois de uma guerra violenta, subjugaram a região e mudaram a cronologia do
movimento.
[2] Em se tratando de governo da língua falo de um sistema de
restrição linguística, dependente do poder instituído e da conjunção e
correlação de forças sociais no curso da história, passar a ser um elemento
primordial para a dominação, “processos de conquista” e, posteriormente,
funcionar como um dispositivo de controle dentro de uma sociedade. Em outras
palavras, o governo da língua,
por excelência, também materializa um sistema de relações diversas de
dominação, transformação dos sujeitos tomando como centralidade a disciplina
linguística e o biopoder (“governo de si”).
FIGURA 01 - TRECHO DO LITORAL
DO PARÁ INDICANDO A CIDADE DE BELÉM
Fonte: Albernaz, J.,1640.
Com a institucionalização do Tratado de
Madri (1750), firmado na capital espanhola entre os reis João V de Portugal e
Fernando VI da Espanha, para definir os limites entre as respectivas colônias
sul-americanas, pondo teoricamente “fim” às disputas, a colonização lusitana no
Grão-Pará se expande a partir da construção de diversos fortes e com a
instalação de diferentes missões católicas. Também não podemos desconsiderar a
presença de práticas extrativistas voltadas ao comércio das drogas do sertão.
As imagens a seguir deixam ver como a
militarização, a religião e o capital estrangeiro trafegavam pelos mesmos
caminhos, naturalmente, imbricados e agindo muitas vezes de forma orquestrada,
como um grande dispositivo de saber e de poder. Da mesma forma, não podemos
ignorar o imenso caleidoscópio linguístico, que se por um lado envolvia uma
grande quantidade de línguas indígenas nativas, por outro, passou a receber
influências de diferentes línguas europeias e africanas. Isso significa uma
grande fratura cultural, uma guerra de cosmologias (sentimentos, religiosidades,
formas de se perceber no mundo) que chega até os nossos dias.
FIGURA 02 – MAPA DA AMAZÔNIA COM A LOCALIZAÇÃO DOS 11
FORTES
Fonte: Exército Brasileiro, CMA,
2013.
FIGURA 03 – MISSÕES JESUÍTICAS NA
PAN-AMAZÔNIA
Fonte: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, 1943; Fragoso, H. Os aldeamentos franciscanos do Grão-Pará,
1982.
FIGURA
04 - COMPANHIA GERAL DE COMÉRCIO DO GRÃO-PARÁ E
MARANHÃO/SÉCULO XVIII
Fonte: Wikipedia.org.
2019.
As enormes
distâncias e a grande diversidade linguística da Pan-Amazônia, somadas aos
interesses diversos das instituições europeias envolvidas neste processo de
dominação, obrigaram Portugal e a Espanha a sofisticarem seus “artifícios de
superioridade” e se em um primeiro momento a gestão da língua foi
responsabilidade das ordens católicas, não tardou para que as coroas ibéricas
instituíssem suas línguas nacionais como marcos da conquista. Toda esta
movimentação está diretamente relacionada aos interesses capitalistas das Metrópoles
europeias.
A Igreja
Católica associa-se cada vez mais fortemente ao dispositivo colonial na
organização do processo colonizatório da América portuguesa. A vinculação é
inerente à relação, àquela época, entre as duas instituições.
[...] É competência da Igreja:
a educação dos habitantes; o exercício do “controle das almas” no cotidiano das
gentes, assegurada a obediência à Coroa portuguesa; a garantia, pela imposição
dos sacramentos e dos atos de liturgia, do direito à terma bem-aventurança.
Ao Estado, cabem: o exercício de poder
sobre a Colônia; assunção e a organização administrativa da terra colonizada e
da política de povoamento; a garantia da mão de obra que se fizesse necessária;
a regulamentação das relações entre a Colônia e a Metrópole. Na lei e na força.
[...] É tão estreito o relacionamento entre Coroa e Clero, que se institui o
mecanismo do “padroado real”, estabelecedor dos deveres e hierarquizações para
ambas instâncias, com prevalência do Estado (PROENÇA-FILHO, 2017, p. 76).
Ao Estado,
cabe destacar ainda, competia promover/intensificar a evangelização, garantidos
“os direitos” e a organização da Igreja em todas as terras descobertas. Neste
âmbito, no entanto, a Companhia de Jesus desfrutava de situação privilegiada:
maior independência na ação e acesso direto ao Sumo Pontífice, com submissão
menor ao governo brasileiro.
Esse status assegura aos jesuítas forte poder
de influência na definição de políticas e estratégias governamentais e
religiosas relacionadas com o processo de catequização da Colônia. “[...] É
este último que se destaca a ação de adaptar e simplificar a língua indígena,
convertida em língua geral nos termos assinalados” (PROENÇA-FILHO,
2017, p. 76). Vale lembrar que a evangelização
envolve, de um lado, espaços da fé, na língua
do catequizando, sistematicamente organizada por religiosos; do outro, os modos
de viver da cultura portuguesa.
Os poderes e os saberes vindos da Metrópole, então,
passaram a ser exercidos através do controle sobre os nascimentos,
mortalidades, saúde, maneiras de falar e condições de vida. A partir deste novo
cenário, uma única manifestação linguística passa a ser entendida como recurso
comunicativo oficial, para efetivar uma também inventada identidade nacional
pelo viés da linguagem. Daí Walter Mignolo (2003) afirmar que uma das armas
mais poderosas para a construção de comunidades homogêneas foi a crença em uma
língua nacional, ligada a uma literatura nacional, que contribuísse no domínio
da língua para uma cultura nacional.
Podemos
observar, na Figura 05, como o
governo da língua administrado pelos religiosos favoreceu a expansão do nheengatu e da língua portuguesa pelos
rios da região. Nesta mesma direção, posteriormente o próprio movimento cabano
(se forjando na cidade de
Belém e explodindo nos campos),
como um catalizador de grande parte dos conflitos envolvendo o processo de
colonização e da insatisfação das sociedades indígenas, segue as dinâmicas de
movimentação e dominação realizadas pelo dispositivo colonial.
FIGURA
05 – ESPACIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS
Fonte: NEVES, I., 2009.
[...] Esses
acontecimentos ajudam a constituir a matriz de poder na qual a experiência
colonial se enraíza e a partir da qual ela é discursivizada. Tal experiência
produz efeitos em quatro esferas interligadas (MIGNOLO, 2005): (i) econômica,
pela apropriação de terra e exploração da mão-de-obra escrava; (ii) política, pela
imposição da autoridade, violência e hierarquizações de povos; (iii) social,
pelo controle do gênero e da sexualidade; (iv) epistêmico e subjetivo, pela
apropriação, produção e imposição de conhecimentos e formas de ser (SEVERO,
2016, p. 14).
Todas estas representações e modos de agir são um arsenal discursivo
poderoso para pensarmos a produção colonial e colonialista sobre as experiências
travadas e vividas na Pan-Amazônia a partir da perspectiva dos agentes
coloniais. Sobretudo, de acordo com Cristine Severo (2013), se fizermos a
conexão com a racionalização dos Estados europeus seguindo o embalo da expansão
marítima, da consolidação do mercantilismo, do aparecimento dos Estados
territoriais, administrativos e coloniais (superando o feudalismo), e do
surgimento dos movimentos de Reforma e Contrarreforma que colocavam em questão
uma dada forma de condução dos indivíduos.
Michel Foucault (2010d, p. 238), nos alerta que “[...]
onde há poder, há sempre, resistência, sendo um coextensivo ao outro”. Logo, poder e resistência se enfrentam com táticas mutáveis,
móveis, múltiplas, num campo de relações de força cuja lógica colonial é menos
regulamentada do que comumente pensamos.
Posto desta forma, a
visão de governo da língua não se restringe ao conceito de que o planejamento
linguístico é uma tentativa somente de alguém modificar o comportamento
linguístico de alguma espacialidade por algum motivo, mas de examinar uma forma
de poder mais ampla, buscando entender se os efeitos que ocorrem nos discursos
oficiais, ou nos “detentores” do poder, ou nas decisões oficiais (dos
“dominadores”), são os mesmos efeitos de dinâmica de poder que compõem os
“dominados” e os seus processos de oposição.
Considera-se, portanto,
através deste percurso do olhar, que a vontade de saber sobre as línguas no
contexto colonial fundamentou, em um só gesto do dispositivo colonial, a
conversão religiosa (catequização), a colonização linguística e uma dada imposição
de mercado, do capital.
Com efeito, estas operacionalizações conceituais
sugerem um caminho interpretativo importante para a constituição do nosso
idioma impregnado de um conjunto de instituições de controle que pode ser lido
em dupla dimensão – o governo da população (o qual “carrega” o governo da
língua portuguesa) e o governo de si – biopolítica e biopoder, portanto,
concomitantemente. Domínios foucaultianos importantíssimos para as análises
realizadas neste texto, isto é, os agenciamentos produzidos
pela biopolítica começaram a instituir teias normativas no cotidiano da região,
em que um dado gerenciamento linguístico representou uma tecnologia de poder fundamental
para se solidificar a colonização linguística e o “domínio” do território pan-amazônico.
REFERÊNCIAS
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NEVES, Ivânia. A Invenção do índio e as
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NEVES-CORRÊA, Maurício. Heterotopias no país do milagre: os
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________. A invenção colonial das línguas da
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Welton Lavareda é doutorando
em Estudos Linguísticos (Área de Concentração: Análise do
Discurso) pela
Universidade Federal do Pará (PPGL/UFPA), com
pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES);
Mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia;
Licenciado em Letras/Língua Portuguesa e suas respectivas literaturas pela
Universidade da Amazônia. É integrante do Grupo de Estudos Mediações e
Discursos na Amazônia - GEDAI/CNPq e do Grupo de Estudos Culturais na Amazônia
- GECA/CNPq, vinculados à Universidade Federal do Pará. Atualmente é professor
da Universidade da Amazônia, lotado no Centro de Ciências Humanas e Sociais, e
do Centro Universitário Fibra, onde colabora na Graduação e na Pós-Graduação Lato Sensu em Letras. Currículo Lattes.
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