Palimpsesto e Belém: redes de memórias, imagens e espaço urbano




As cidades, seus sujeitos, suas sujeitas são historicamente construídos, suas memórias são fraturadas e a depender das emergências históricas podem visibilizar e silenciar os mais diversos discursos. Não podem ser concebidas como um território neutro, esvaziado de sentidos, ou ainda um cálculo urbanístico, mas sim como um pululante espaço interativo e comunicativo.
Na complexa e plural história das sociedades humanas, desde os primeiros registros de que se tem notícia, o ser humano sempre esteve envolvido em processos de interação, como nos atestam as tão antigas pinturas nas paredes das cavernas. Agora, na contemporaneidade, os grafites e outras artes de rua ocupam as paredes dos centros urbanos e estão nos muros, nas portas de residências, em exposições nas galerias de arte e até mesmo no universo tecnológico. Em certa medida, mantendo este desejo de interação, cada vez mais pluralizado.
Com estéticas e dinâmicas bem singulares, as paredes como suporte de registros gráficos continuam a ser utilizadas, quer seja para assinaturas, registros de insatisfações, declaração de amor, quer seja para posicionamentos políticos mais explícitos ou ainda para demonstração de fé, ou mesmo em anúncios e propagandas como nos mostram as telas desta mostra de Guih Nunes.
Estes enunciados pintados, desenhados, colados nas paredes refletem ou refratam discursos, envolvem vários sujeitos em seus processos de interação, desde o grafiteiro, até o sujeito ordinário que exibe gestos de leitura com o seu olhar. São intervenções constituídas por redes de memórias, enunciam discursos que podem agradar ou desagradar aos seus interlocutores. Para Arnaldo Silva, um dos mais antigos estudiosos latino-americanos sobre este tema, os grafites se constituem nestas “atmosferas urbanas”. As inscrições de rua são parte integrante da paisagem urbana, constroem espécies de túneis por onde deslizam fermentos sociais.
Quais são os discursos colocados em circulação por essas intervenções? Para responder em parte a esta pergunta, Guih Nunes reescreve a cidade em suas telas. A partir de recortes de artes de ruas, fragmentos de imagens que traduzem Belém, ele nos apresenta não a cidade europeia, sanitarizada, idealizada, que não existe, mas uma Belém cotidiana, pintada no preço do açaí, na venda de produtos de limpeza, na poesia borrada no muro, que também conhece seus momentos de apogeu todo ano no manto de Nazaré.
Belém, a exemplo das primeiras cidades fundadas pela colonização, chegou ao século 21, marcada por sucessivas demolições e reconstruções, que implicaram em apagamentos e reescrituras de suas memórias nos enunciados espraiados pelos muros e pelas paredes de suas longas, curtas e truncadas ruas. Podemos então aceitar o convite destas poesias em imagem e pensar a cidade como um cosmopolita palimpsesto.
Na Grécia Antiga, o pergaminho, material utilizado para as escrituras, era escasso e caro, por isso era comum apagar um texto para fazer outro em cima, sobre seus restos, que resultavam nos palimpsestos. A partir do olhar sensível que reescreve a cidade, vemos nestas telas imagens que guardam vestígios de imagens anteriores e deixam ver a epiderme dos muros e a forma como escrevem a história do presente na cidade.
Ivânia dos Santos Neves







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